Artigo de Opinião

AS MULHERES DA RIBEIRA E O DIREITO À SUA CIDADE

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Cidades, espaços e territórios são parte dos meus estudos, daquilo em que neste momento me especializo. Por isso, o processo de turistificação em curso (PTC) na cidade em que vivo, o Porto, atinge-me de duas maneiras decerto distintas, mas perfeitamente associáveis. Por um lado, confronto-me com ele como estudioso, como alguém que tenta perceber dinâmicas que – e isto é muito importante – resultam não de uma qualquer ordem natural das coisas, mas de decisões tomadas conscientemente por quem se elege para (supostamente) representar a vontade do povo. Por outro lado, como residente permanente, ainda que não originário, pertencente de forma praticamente indistinta ao grande naco popular, estou quase tão vulnerável às investidas do PTC quanto qualquer outro (sub)cidadão desempoderado. A grande diferença é eu não residir (por enquanto) em uma área submetida à sanha do capital especulativo.

O absurdo do caso de Joana Pacheco, a senhora despejada com dois filhos pequenos da casa em que vivia, na Ribeira, teria o seu quê kafkiano não fosse a normalização da injustiça habitacional. Todas as açucaradas palavras do Artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, tocante à Habitação e ao Urbanismo, diluem-se, como se fossem mesmo açúcar em água, face à vontade de uma economia sequestrada pela financeirização. Ao valor de uso de uma habitação sobrepõe-se o peso esmagador, sanguessuga e parasitário do valor especulativo de investidores que, em muitos casos, residem a muitos milhares de quilómetros do Porto.

A aposta no mercado imobiliário e na construção civil como alavancas do país no pós-crise (?) tem todo um preço social descarregado sobre as camadas populares das grandes cidades. Por mais que possa não haver uma ligação imediata entre esse despejo e o PTC, isto é, que o prédio em que Joana Pacheco habitava – que é camarário – não venha a ser logo convertido em mais um alojamento local para turistas ou entregue a algum trâmite gentrificador, a influência de uma ideologia financeirista que se apropria do centro urbano e o privatiza com a conivência da autarquia é inegável. Para o executivo camarário não há qualquer entrave moral que o atormente quando esse é apenas mais um despejo. O absurdo está normalizado.

Como já disse, não sou originário do Porto. Imigrei para cá, vindo do Brasil, há 19 anos. Poderia ser tempo suficiente para dizer que já me sinto portuense, mas a verdade é que, por motivos muito pessoais – e por ao longo desses anos ter vivido em outros países –, a minha relação afetiva com esta cidade sempre foi deveras conturbada, pelo que a ideia de identificação com esse seu je ne sais quoi encontra em mim uma adesão se não nula, pelo menos bastante limitada.

Essa admissão de resistência ao sentimento de pertença me pode descredenciar a falar pelos portuenses, mas por outro lado me credencia a uma análise distanciada e menos emotiva da relação dos residentes com a cidade: Há pessoas que se orgulham de viver em um lugar que atrai famosos. O facto de Madonna ter escolhido viver em Lisboa parece ter enchido o ego coletivo dos lisboetas e, por extensão, dos portugueses. “Se uma estrela pop decidiu vir para cá é porque reconhece a nossa grandeza e as nossas virtudes”, dir-se-á. Eu pensaria antes nos impactos que os caprichos de celebridades podem gerar sobre quem de facto reside e vive as cidades. Orgulho, para este nãobairrista mais interessado em justiça social do que em city marketing, seria se a minha cidade garantisse acima de qualquer outra coisa o Artigo 65º da Constituição a todos os seus residentes, a todos os que realmente formam o que quer que venha a ser a sua identidade, sejam nativos ou alóctones.

Por isso, cabe-me dizer que, caso fosse portuense de gema, e daqueles bem bairristas para quem o Puorto é uma naçóm, o despejo de gente com quem eu partilhasse sotaque, sentimento de pertença e sentido comunitário me seria a maior das afrontas. Além de atentar contra o direito à cidade (esse ideal inicialmente ventilado no urbanismo pelo sociólogo francês Henry Lefebvre e considerado um dos mais negligenciados direitos humanos por David Harvey, talvez o geógrafo mais importante vivo), o PTC cria também uma anomalia na identidade portuense: ao mesmo tempo em que celebram a sua singularidade, muitos residentes, entre desavisados, desatentos, beneficiados e não afetados por esse processo higienista que impõe monofuncionalidade sobre um espaço urbano que para combinar justiça e harmonia tem de ser diversificado viram as costas à população que parece só servir como adereço, como uma abstração construída para se converter a partir dessa singularidade num produto turístico.

É a cidade sem residentes, a cidade das roupas que estão nos varais não para secar, mas para completar o fachadismo. Uma cidade capaz de condenar à periferização e à exclusão aqueles que lhe dão substância para assim vender a sua alma a uma indústria que lhe suga até ao tutano enquanto remete o grosso da riqueza gerada a investidores que nunca lhe pisaram o solo.

Por fim, duas exclamações:

Todo o apoio às mulheres guerreiras da Ribeira!

(O gesto que tiveram para com Joana Pacheco – e para com elas próprias, reivindicando o direito à sua cidade – foi dignificante. Para mim, se há bairrismo positivo, que valha a pena ser alimentado, é esse brio com que defenderam a sua comunidade).

Ainda que eu esteja deslocado do sentimento de pertença, tenho muito mais respeito pela identidade do Porto do que o atual inquilino da sua câmara municipal. Rui Moreira, o senhor é indigno de representar esta cidade!

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