Crónica

Lá na “DesQuarentena”

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Após mais de duas semanas em casa, tão enclausurada quanto o pássaro que a minha família adotou há uns dias, comecei a pensar na maneira certa de falar do assunto predileto da sociedade. Bem sei que não tenho de o introduzir, nem me devo preocupar se o vão aceitar ou não, pois ele está iminente em qualquer contacto social, literalmente. Por isso, sim, é exatamente isso. Vou referir mais uma vez a famosa quarentena, porque nunca é demais.

Nas tantas atividades que inventei ou decidi recorrer para me impedir de ser produtiva, apercebi-me que havia alguma maneira de descrever este isolamento social sem ter de empregar palavras que tanto queremos dizer. Queremos insultar o Estado de Emergência à força toda, fazer um protesto via Zoom (porque acima de tudo é necessário continuar cumpridor), recusar o uso de luvas e, se possível, convocar um grupo de amigos só para lhe darmos um cumprimento de mão, para depois cada um ir a sua vida. Por isso, para tentar fugir ao que se parece ter tornado mais regra que a própria quarentena, decidi descrever toda esta situação através de uma música.

O fado sempre foi a voz dos portugueses, que vinha acompanhada pela rouquidão da alma de cada um. Suponho que por essa mesma razão, ao cantarolar esta música pelo eco da minha casa (e ao receber uma ovação do mesmo), eu me apercebi que fazia sentido enquadrá-la neste tempo, neste momento que atravessamos.  Cantei e ainda canto a “Desfado”, de Ana Moura, alterando com a máxima cordialidade o seu nome para “DesQuarentena”.

Logo no primeiro verso, a fadista aborda o mais comum dos tópicos: a fatalidade portuguesa. Confronta o destino, embalando-o em dúvidas, fragmentadas em certezas, de que o próprio fado não quer assumir o papel de que está condenado a ser quem é e a servir-nos deste modo, a oferecer-nos o mais reles dos pratos ao seu dispor. O destino está tão (ou mais) confinado que nós. Ele, acima de tudo, espera que o mundo não caia na tentação de acreditar que este seja o único caminho que ele desenhou. Por isso, limitamo-nos a não ter “fado nenhum”, a adiar o prazer de sentir que há uma hipótese ou que não há. Vivenciar sem realmente viver.

Depois, a cantora contrasta o prazer de estar triste com a melancolia de ser feliz. Sinto que esta divergência que surge entre estes dois sentimentos primários ajuda no enquadramento desta quarentena, visto que tendemos a balançar entre ambos. Lembro-me que antes de tudo começar, mal podíamos esperar para parar por casa e dizer um longo e caloroso “Olá!” às quatro paredes, que rapidamente se tornavam nossas confidentes. Um curto espaço de tempo era o suficiente para emoldurar todas as memórias na parede, uma a uma. Agora tenho-as vazias, ornamentadas com a corrente de ar que vai correndo pela janela da sala que de vez em quando traz o sol para iluminar o descorado da parede. Tornaram-se cativas do nosso próprio cativeiro. Esta minha alegria de querer ficar por casa, tornou-se agora uma tristeza indelével no barulho da mesma. Ao mesmo tempo que me sento no chão do quarto (porque da cadeira já estou farta) penso na altura em que esta grande tristeza seria a minha maior felicidade.

Já no refrão, Ana Moura acaba por referir o sentimento mais puro de todos, que tão enraizado está também na cultura portuguesa. A saudade. Saudade de algo que foi, que está perto ou que está por vir. Aqui, a fadista refere que tem saudade de sentir saudades, “saudades de ter alguém que aqui está e não existe”. Ora, não há emoção mais esclarecedora que esta durante o período que vivemos. Há uma quantidade colossal de coisas que me estão em falta. Tenho saudade de ter saudades de abraçar um amigo que não vejo há anos. Saudades de ter saudade de ver o pôr-do-sol no conforto do frio da praia de Matosinhos. Saudades de ter saudade de abrir a porta da rua e respirar fundo. Saudades de ter saudades de ser livre. Acima de tudo, tenho saudades de ter saudade de me sentir segura.

Podia encontrar mais semelhanças entre a beleza da música e a desgraça atual, mas sei perfeitamente que até lá acabaria a quarentena. Com o passar dos dias, apercebemo-nos que nada está garantido e que é mais que normal sentirmos tristeza, raiva ou angústia oriunda de uma sensação de inexistência de segurança, mas que também é bom poder saborear tudo isto enquanto dançamos ao som da música portuguesa, que nos serve tanto de encanto como de integridade. “Na incerteza que nada de mais certo existe”, como disse Ana Moura, se não a certeza de que devemos ficar em casa (e isto acrescento eu), brindemos a um destino que não deseja que nele confiemos, pois assim sabemos que ele nos reserva mais que apenas mais um final monótono.

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