Crónica
Os novos ídolos
A primeira vez que me cruzei com BoJack Horseman foi há pouco mais de 11 meses. Na ressaca de uma fatídica noite na Queima das Fitas, cujos contornos lembro apenas pela memória de outros, decidi dar uma oportunidade à série. Depois de ver a desilusão nos olhos da minha mãe, pouco ou nada tinha a perder. Penso que terá sido esta a condição essencial para me fazer suportar o episódio piloto que, não sendo verdadeiramente fraco, não capta toda a dimensão do que se avizinha. Foram duas temporadas consumidas de rajada até à hora de jantar. Quem diria que seria num cavalo alcoólico e deprimido que encontraria algum conforto para o meu estado lastimável?
Uma caminhada pautada por esquecimentos e reencontros, consequências naturais da vida académica, até caminharmos juntos para o derradeiro final, no início de fevereiro. Oito episódios que me deixaram colado ao ecrã, desta vez na sala, mergulhado em escuridão como no princípio. E, insistente e incorruptível, o existencialismo de Bob-Waksberg, criador e regente dos fios das suas marionetas, volta a desmanchar tudo o que tinha construído atirando às personagens as peças do seu próprio puzzle para se montarem outra vez.
E é precisamente a imperfeição que torna estas narrativas tão interessantes. A dor de existir ganha movimento. Ganha representação. A beleza de não sabermos o sentido da vida, se é que somos sequer mais do que um buraco na estrada que é o Cosmos, apesar de muitos nos tentarem vender as suas filosofias baratas. O absurdo posto diante dos nossos olhos ganha outra conotação quando não somos nós a mostrá-lo, principalmente com a alegoria utilizada. A faceta cómica surge muitas vezes na contemplação dos nossos comportamentos nos animais que habitam esta realidade em que Noé parece ter tido sucesso.
A imperfeição que se estende até à imoralidade. Os últimos anos pautaram as séries de anti-heróis que teimamos em idolatrar. Walter White, talvez o mais adorado dos criminosos da televisão. Podemos juntar a este o incorrigível Don Draper e o ambicioso Tommy Shelby. Até Rick Sanchéz, este já numa bifurcação desta corrente de homens complicados, mas que mantém ostensivamente o paradigma vivo. Não penso que se busque compreensão com os comportamentos errados dos protagonistas. Apenas a exploração da humanidade, não só a que ainda há neles, mas também naqueles vitimados pela sua ira e nos que os insistem em acompanhar.
Todos erramos. Não tanto como eles, certamente. Mas se ainda esperamos a redenção de personagens tão imperfeitas, não poderemos também esperar a nossa? A vida não era uma série de televisão, mas o tempo para as sitcoms já se esgotou, como o passado de BoJack nos recorda. Na nova era da televisão, pouco ou nada acaba bem. No futuro, só o esquecimento é garantido. Os grandes gestos não resolvem nada, só camuflam os problemas. Mas há sempre algo pelo qual vale a pena continuar. O caminho para a mudança é lento, incerto e tem de ser trilhado todos os dias. E isso não é fácil. Mas não há outra maneira.
Os grandes contadores de histórias parecem ter abandonado as estantes para preencherem os grandes serviços de streaming. Não se faça o funeral à Literatura, que as grandes obras, mesmo as pautadas pela imagem, ainda nascem pela palavra. O próprio pensamento é palavra, ainda que não falada. Esta teima apenas em migrar, de criador para criador, entre livros, guiões, telas e rolos, mediante as necessidades imediatas que a realidade lhe apresenta. E este novo regime vigente apresenta grandes vantagens, não por romper com o passado, mas por se apoiar nele.
Em primeiro lugar, pela inclusão dos elementos do quotidiano, que são postos à prova do tempo e cuja evolução é acompanhada à medida que as temporadas avançam. Do mesmo modo que a nossa perspetiva acerca deles muda, também as interações que eles afetam nas séries sofrem repercussões. Algo de elevado interesse, inclusivamente do ponto de vista documental. Em segundo lugar, pela inspiração que muitas vezes surge de obras passadas, de qualquer género, e que podem aqui ser aplicadas num modelo, ora mais longo, ora pontual, através de episódios singulares que exploram a narrativa por um prisma completamente diferente.
BoJack Horseman era especialista neste género de episódios únicos. O sufocante Fish Out of Water, provavelmente o esteticamente mais belo de todos e dos poucos em qualquer série capaz de vos deixar no limite de um ataque de ansiedade. The View from Halfway Down, o penúltimo da sucessão de 6 temporadas, um ensaio louco sobre a inevitabilidade da morte que me deixou petrificado em frente a um ecrã negro após os créditos finais. Dois episódios que, por si, já justificariam uma maratona para os ver.
Mas eis que surge Free Churro, um monólogo de vinte e seis minutos num funeral. A subversão total daquilo que tomávamos como certo. Praticamente não existem mudanças de plano, apenas da pequena cena introdutória para BoJack e, no fim do episódio, um plano do público. A voz grave de Will Arnett captura-nos enquanto o discurso errante de BoJack o vai lentamente levando, de história em história, às conclusões, nunca as desejadas, mas sempre as reais. A gargalhada perante o desespero nunca foi tão significante como nestes instantes.
Os poetas também evoluíram. Depois de anos a musicar poemas escritos com propósitos maiores, que já sabemos como são orgulhosos os poetas, eis que as letras musicais começam a ser transformadas em poemas. Dylan chocou o mundo ao reclamar o seu Nobel, por anos de servidão à palavra. Cohen merecia-o e terá sempre lugar entre os maiores. E se os versos tenebrosos de Nick Cave não forem a prova de que a música pode ser poesia, não sei como vos convencer. Talvez com o Pulitzer que Kendrick Lamar conquistou com as suas rimas.
E assim, ao fim de quase um ano, BoJack Horseman tornou-se parte de mim. Há algo de enternecedor na incorporação na nossa personalidade das obras que nos tocam. Nos conselhos que nos deixam, tão ou mais significativos do que aqueles que retivemos pelo falhanço, cujo único benefício continua a ser o saber empírico. E é bom ter livros, séries, filmes, quadros e música mais humanos. Sem esquecer que a Humanidade nem sempre se esconde nas formas humanas.
Fechados em casa, pode parecer-nos que a vida é uma sucessão de infelicidades e que, mais tarde ou mais cedo, se morre. Mas não, às vezes a vida é uma sucessão de infelicidades e depois continuamos a viver.