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Crónica

O novo mundo pós-coronavírus

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Depois do caos, a luz. Ou pelo menos foi isso que aprendemos por todos os lados. Desde a origem do mundo, percorrendo às filosofias de Platão, até o reconhecimento do saber na era Iluminista. Absolutamente tudo nos faz crer que a vida cíclica ora nos remete à escuridão, ora nos ilumina.

Que a COVID-19 é uma crise mundial, já sabemos. Um verdadeiro caos. Mas o que será que procederá quando ela passar? Quais serão as mudanças individuais e coletivas que teremos? E como no mito da caverna, narrado por Platão, que luz irradiará sob os nossos olhos quando sairmos da caverna?

Calma, não interpretes erradamente. Quando trago Platão para a conversa, não faço a alusão da nossa casa para a caverna. Não me refiro a estarmos enclausurados em casas e apartamentos enquanto vemos o mundo agora pequeno nos ecrãs. Porque sim, até podemos tirar aprendizagens desta vivência, mas cá entre nós, isso é mais sobre gratidão do que a escuridão de uma caverna – afinal, ter um teto e poder permanecer nele enquanto muitos lá fora assumem os riscos, seja a trabalhar ou a morar nas ruas, é um privilégio.

A caverna que me refiro é onde já estávamos muito tempo antes dessa quarentena. É a ignorância em plena era da informação. É essa prepotência humana de se sentir o rei do mundo em cima de carniças. É a incompetência de menosprezar a vida ao consumir desenfreadamente aquilo que faz mal. É a insanidade em destruir sem medo e sem dó o próprio planeta que nos abriga. É o egoísmo de pensar individualmente, de pensar em privatizações, de excluir o outro, de não investir em saúde pública, de renegar apoios sociais, quando vivemos em sociedade. É a burrice de não enxergar o que um vírus teve que nos desenhar: não somos os únicos aqui.

Não somos e nunca fomos. E não sei em qual período da história paramos de enxergar o óbvio. Vivemos de explorações e consumos compulsivos que agridem a nós e ao mundo. O Sars-Cov-2, conforme indica a hipótese, é originada de zoonoses. Ou seja, é um vírus que habita em outros bichos, neste caso possivelmente em morcegos, e sofrem mutações até infetarem os humanos. Mas não culpe os bichinhos. A culpa é nossa em invadir o terreno alheio. Zoonose é o reflexo e a consequência das intervenções humanas no meio ambiente. Não foi a primeira e nem será a última: assim como a procedência do coronavírus, 70% das enfermidades que surgiram desde a década de 1940 são de origem animal, segundo o relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Há quem queira culpabilizar a China sem grandes reflexões sobre seus próprios atos e suas respetivas consequências. Por trás do bife suculento de todo dia, quiçá de duas ou mais vezes por dia, há vírus e bactérias ou o uso excessivo e inadequado de medicamentos da pecuária para evitá-los. Por trás também há a indústria que mais gera gases do efeito estufa, além de responder por 14,5% de todas as emissões antropogénicas, que aumenta drasticamente a temperatura da terra.

Isso sem falar das escolhas políticas, sociais e económicas. Da prioridade à economia do que à saúde. Da defesa do Mercado como rei absoluto. Da sonegação aos impostos. Pensamos de maneira individualista mesmo vivendo em sociedade. Facilitamos o ingresso do vírus em nós assim como somos omissos às outras crises. Permitimos as desigualdades, as falsas necessidades, as patologias físicas e sociais, a inversão de valores. Até que uma dessas nos atinge.

Não sou uma pessimista. Nunca fui. Apenas utilizo aqui os factos. Alguns factos de assuntos quase genéricos para evidenciar o óbvio: o sistema que prioriza o consumo, auto-consome-se – entra em colapso. Mas as crises servem para trazer mudanças, sempre foi assim. A Peste Antonina, por exemplo, desestabilizou o Império Romano. A Praga de Justiniano enfraqueceu o Império Bizantino. A Peste Negra trouxe imensas alterações sociais e encaminhou o fim do sistema de servidão imposto aos camponeses. A COVID-19 não será revolucionária, mas algumas mudanças já estão por vir, como a proibição do consumo de animais selvagens na China, uma resposta direta e específica ao causador da crise. Desta crise. Porque as outras que já vivenciamos e as demais que estão por vir também precisam de um antídoto.

Um mau momento pode ser bom para repensarmos as nossas demandas e aos efeitos delas. É evidente que somos vulneráveis às consequências de um consumo que devasta o mundo. É irrefutável que precisamos mudar. O que faremos de diferente quando o mundo reiniciar?

Eu sou otimista.

Depois do caos, sempre vem a luz.