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Crónica

Quarentena? Que cena!

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É um facto que o ser humano, respeitando a complexa e indecifrável natureza que o compõe, não gosta de se sentir constrangido a alguma conduta, sentindo logo um fervoroso ímpeto para agir no sentido proibido.

De facto, a partir do momento em que foi decretado que todos os cidadãos devem permanecer, pelo menos, quinze dias em casa, o pânico desmesurado alastrou-se.

Como prova da sua intemporalidade e universalidade, ecoam fortes em mim as palavras do mestre António Variações, quando disse “Porque eu só estou bem, onde eu não estou/ Porque eu só quero ir, onde eu não vou.”

Por momentos, cheguei a ponderar que, por ineficácia na comunicação, as pessoas tivessem entendido que estavam afinal, impreterivelmente, interditas a entrar em casa. Só isso justificaria as várias respostas caracterizadas pela falta de fôlego e ansiedade antecipada.

Considero que estas reações, pautadas por um suave e irritante drama, se devem mais ao estado que o Senhor Variações descrevia, e a que ninguém é alheio, e menos a uma verdadeira angústia causada pela isenção de horários para acordar.

Na verdade, enquanto profissionais de várias áreas continuam a trabalhar, no seio do desenvolvimento da sua atividade, para garantir os serviços mínimos, os restantes foram dispensados de funções, com tudo o que isso acarreta. Para ser mais elucidativa, podemos estar no bem bom da cama a ver um filme, a ter aulas online ou a escrever uma pseudo análise da realidade, porque não só nos é permitido, como nos é exigido fazer o que nos apetece durante quinze dias, desde que entre as quatro paredes da amiga habitação.

Será assim tão aflitivo podermos finalmente diminuir a promissora lista que escrevemos na véspera de ano novo? Estar em casa abre um leque de possibilidades para nos enriquecermos, nos cuidarmos, nos conhecermos. Acho que é devido a esta última que o processo se torna tão doloroso para alguns. Chocarmos de frente connosco dói tanto quanto pensar a fundo sobre qualquer coisa.

Tudo pode chegar até nós a menos de uns quantos cliques: a comida, o cinema, o trabalho, a companhia. O isolamento não tem de existir no sentido amplo da palavra, aliás, alguns de nós agradecerão o minimalismo no toque. Para vocês que apreciam uma circunferência delineada entre o espaço pessoal e os outros, eis a vossa era!

Para além disso, é um tempo de estendermos a nossa humanidade, aquele fragmento que persiste em fazer-nos sentir e que trepa por entre os saberes tecnológicos e metálicos. Olharmos de perto para a nossa família, perceber, em verdade, quem são e que necessidades têm, o facto de nos repararmos tão pouco quando ao fim do dia já chegamos sugados de vida.

É tempo de aprender a sermos família sem que seja natal. Não será de estranhar que as irritações se agudizem, porque assim é, assim somos, mas será sempre uma consequência do convívio, que tantas vezes fica de parte até o tempo não ter mais significado.

O livro de cabeceira poderá, por fim, sair dela e o álbum que comprámos para dar cor à nostalgia, está pronto a explorar as nossas memórias. As receitas que são sempre demasiado demoradas sem o auxílio da Bimbi, podem ser testadas para deleite próprio e dos demais. O processo pode mesmo ser mais saboroso do que o produto final, dedicar tempo ao novo tem destas vantagens.

Há uma multiplicidade de coisas que podemos aprofundar, experimentar, aprender, sentir. As paredes, o teto, o chão, o telhado. As barreiras físicas de uma casa nunca sufocarão a vontade de aprender, de ser mais, desafiarão sim, a imaginação dos que mal fecham os olhos para ver melhor.

Coloco um CD da Marisa Monte, cubro-me de flores invisíveis, o sol é claro na sua abordagem à minha janela, danço, acredito que “Há um vilarejo ali /Onde Areja um vento bom/Na varanda, quem descansa /Vê o horizonte deitar no chão.” Apercebo-me que há muito tempo que não via o vilarejo porque não tentava focar a visão que vem de dentro. Invoco a minha imaginação primária e concentro-me na criação de histórias. Volto às origens.

Que assim seja, que este tempo de pausa na vida atarefada no mundo dos hiper vivos, nos faça ir em busca das nossas raízes, de quem somos, do que precisamos. Porque somos mais do que entes suportados por oxigénio. Embora duvide, por vezes, que este elemento chegue em quantidade suficiente ao cérebro de algumas pessoas, tal é a mediocridade.

Unam-se, saiam à janela para aplaudir quem luta por todos, mas não se esqueçam, no caminho, de olhar a lua e de sentir a aragem que nos cumprimenta, se a aceitarmos. Há tantas coisas que ignoramos ou esquecemos existirem, como se permanecessem à margem do nosso centro. Pois então, é tempo de colorir de novo o pôr-do-sol, a neblina, as nuvens, num quadro, se for o caso.

É tempo de contenção, de respeito por todos, de altruísmo puro e apesar disto, de ganhar também densidade individual. Perceber os ossos e músculos que nos constituem e no fim, entender que se não estamos bem na nossa própria casa, não somos livres nem felizes no nosso próprio corpo.

É assim isto caros leitores, a casa é uma metáfora para nós próprios. É sempre mais fácil viver fora do nosso âmago pisado, mas ser apenas contorno não é ser-se, preencham-se!

Ah! E já que estamos numa maré de bons conselhos, hidratem-se e mandem vir uma corona fresquinha. Um brinde à saúde, aos que a assistem e ao streaming!

 

Márcia Branco