Devaneios

Quarentena para Todos: O confinamento das minorias

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Quarentena para todos. Para aqueles que têm teto e para aqueles que não o têm. E se falássemos daqueles que não têm?

Manter a higiene, para aqueles que conseguem apenas tomar banho pela caridade alheia, ou lavar a cara num bebedouro de um parque não parece ser tarefa fácil nem em dias normais, quanto mais em dias como estes; lavar frequentemente as mãos com água e sabão, para quem a maioria da água a que tem acesso é a da chuva e para quem ter sabão não é tão relevante como ter um pedaço de comida que sossega um estômago vazio há dias, não é tarefa simples nem em dias banais quanto mais em dias como os nossos.

Para todos aqueles que dependem do contacto com a ajuda estranha, perder contacto é perder auxílio. Para quem anseia pela refeição quente que lhe chega pela mão de quem reparte o que tem ou dá o seu tempo para distribuir o que os que partilham oferecem, voluntários infetados, desmotivados pelo medo ou impedidos por outras obrigações, equivale a fome.  Para cada um dos que encontram calor numa conversa curta com quem passa, ruas vazias é solidão.

Quarentena para todos. Para os que são mantidos próximos dos entes queridos e para aqueles que sentem na pele o ato de violência de estar confinado a casa.

Sofrem aqueles que se separam dos que mais gostam pelo teto não ser o mesmo. Sofrem, também, aqueles que por terem um teto comum estão mais próximos do ato físico ou verbal do desespero.

A queixa que chega do vizinho de cima, cansado da internet que falha, cobre as lamúrias da vizinha de baixo, cujas nódoas negras da pele exaltam a lembrança do que ontem foi passado mas que o confinamento indica que vai ser presente e futuro frequentes.

Correm à compra de papel higiénico o casal do terceiro esquerdo, enquanto o filho do quinto direito ensopa as toalhas da casa de banho em sangue, ou lágrimas, pela pele arrancada ao pontapé ou pela palavra atirada ao estalo. Padecesse-se assim, entre quatro paredes, dos males do caráter de um, que atinge o outro, sem que este último tenha escapatória possível, pois não se pode sair de casa.

Quarentena para todos. Para aqueles que sãos são, malucos estão, e para todos os que malucos vão ainda ficar, também para aqueles que se vão talvez curar da maluqueira que é a vida, e da insanidade que é a raça humana.

Música enche varandas; nas alturas chega o som às varandas alheias e reúnem-se rostos estranhos para cantar em conjunto, para dizer que vai ficar todo bem, para honrar vizinhos, por palmas ou gritos encorajadores, pelo ato de ajudar ficando em casa. Nos quartos, de estores fechados, estão também aqueles que o barulho não podem suportar. Cambaleando de trás para a frente está sentado o menino autista da porta ao lado. Correndo, gritando, está o esquizofrénico cheio de conspirarem música alta contra ele. Sentado, quieto, está aquele que se esqueceu já porque é que não pode ir lá fora, mas o som da música pode sair livremente das casas dos outros para a sua.

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