Crónica

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A dissonância entre o desejado e o inesperado constrói a perceção que tenho do tempo. Gosto de imaginar que o tempo não se pauta pela unidade, mas sim pela diversidade de momentos que se cruzam e recruzam num quadro feito de assimetrias e abstracionismo.

Algum tempo é feito de segundos, minutos e horas. Outro surge quando o inaudível se entreouve num entardecer quente de verão e, nos interstícios da rotina, vive-se a desresponsabilização mais bonita do mundo. A que não se quantifica e desperta uma sensação de pequenez num instante grandioso.  É ambígua o suficiente. Um pouco mágica.

Como se dispõe o tempo nestes dias de isolamento? Os que o consideram longo e insuportável vivem com o sofrimento de desperdiçar algo que não poderá ser recompensado mais tarde. Os que seguem a sucessão das horas calmas do dia abraçam a possibilidade de consumir o tempo que antes fugia com cada passo. Em casa, confinados, gostaríamos de voltar às rotinas cansativas. Com trabalho, viagens de ida e regresso e dias cinzentos que nos obrigam a sair, só queremos chegar a casa para apreciar um bom filme e um bom jantar. “Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade” – Fernando Pessoa descreveu na perfeição um sentimento que é comum. Nunca estamos completamente satisfeitos com a sucessão de instantes que compõem o nosso tempo. Há sempre algo que gostaríamos de mudar e, no entanto, quando finalmente tudo muda, voltamos a ficar insatisfeitos. Talvez as mudanças que fazem o tempo correr em direções opostas sejam a composição com a dose certa de força que nos refina o carácter. Se é verdade que, muitas vezes, somos desafiados de maneiras que nos parecem inconcebíveis, também é verdade que a maneira como reagimos a esses desafios determina se saímos deles com mais força ou não.

O tempo de que dispomos parecerá sempre curto. A perceção que temos da sua rápida passagem é a forma que a alma arranja de não pedir explicações à vida. São as ondas que rebentam aos nossos pés e a esperança que encontramos numa noite estrelada. São as manhãs em que o mundo ainda está em silêncio e as partilhas que nos fazem crescer. Abolidas as fronteiras do tempo, temos acesso a novos patamares da nossa existência. Não há tempos aborrecidos, que passam devagar, ou tempos desperdiçados. Também não existem acelerações temporais que nos fazem sentir que os bons momentos passam demasiado rápido. Vivemos com a perceção do que nos envolve e usamo-la para preencher os nossos espaços de tempo. Esta série ininterrupta de momentos, que tantas vezes nos faz questionar tudo, é uma viagem que falhamos em compreender. Mas é única e eterna na sua incapacidade de explicação. Quando se pensa dizer tudo sobre os mais importantes assuntos da vida humana, as coisas mais importantes ficam sempre por dizer.

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