Crónica
O Fim do Mundo
Assumo-me cada vez mais fã do asteroide. Do fim dos tempos. Dos nossos, pelo menos. Não do que virá depois, as já muito esgotadas narrativas pós-apocalípticas, espremidas até ao tutano pela indústria cinematográfica. Duvido que, quando o dia chegar, por cisão ou fusão atómica, seja como nos filmes. Confio mais nos livros como cronistas do desastre iminente. Até porque, quando a bomba explodir, estar a vê-la é mau augúrio.
Não pretendo participar ativamente na aniquilação da nossa espécie. Mas a inevitabilidade do nosso fim fascina-me. Que um dia, tudo aquilo que tomamos como certo, tudo aquilo que tomamos como nosso, desparecerá. Que, no contexto cósmico, sejamos pouco mais que nada. Um capricho. Um acaso de condições propícias à vida. Surge-me na memória a imagem captada pela sonda Voyager 1, a 14 de Fevereiro de 1990. Um pequeno ponto, um mísero grão de pó, está suspenso num raio de Sol.
O Pálido Ponto Azul, como lhe chamou Sagan. Somos nós. A 6 mil milhões de quilómetros de distância, perdida depois da órbita de Plutão, foi assim que a Voyager 1 nos viu antes de nos virar para sempre as costas. A expressão máxima da nossa insignificância perante a imensidão da realidade está ali, naquele quadrante do nosso sistema solar. Mas é a nossa casa. Sempre foi. E, ao que tudo parece indicar, sempre será.
Todo o sangue derramado. Todas as lágrimas. Todas as juras de amor eterno. Tudo o que vivemos aconteceu ali. Lutamos por pedaços do grão a que chamamos casa. Enganamos e mentimos. Atraiçoamos e roubamos. Batizamos os nossos soldados com os nomes das nossas crianças. E enviamo-los para os horrores da guerra. Tudo em nome de mais uma fração do nosso ponto. Líderes supremos, reis, imperadores. Todos pensavam ter roçado o limite do divino. Mas os velhos tiranos morrem como os outros.
Carl Sagan escreveu-o melhor do que eu e recomendo-vos a leitura. A Voyager 1, que captou esta imagem a seu pedido, está agora mais longe do que nunca. Espera-se que perca, ainda esta década, a comunicação connosco. Carrega, à semelhança da sua gémea, a Voyager 2, um disco de cobre revestido a ouro, resquícios de antigas explosões estelares, como apresentação da nossa espécie. Leva imagens da Grande Muralha da China, leva obras de Beethoven e de Mozart, leva os nossos dialetos. Leva tudo aquilo que consideramos que há de grandioso em nós.
Mas nada disto parece relevante. O Universo continua a expandir-se e a arrefecer. A Terra continuará a rodar, mesmo depois de a destruirmos, até ser engolida pelo Sol. Quanto mais nos afastamos, mais ridículo tudo nos parece. Está na hora de voltar. À medida que nos aproximamos, já chegados à Lua, parecemos um berlinde azul. Antes de reentrarmos na atmosfera, com os astronautas da Estação Espacial Internacional a acenarem-nos da sua casa enlatada, ainda não vemos fronteiras.
Aproximando-nos o suficiente, conseguimos ver-nos. E é como se a aleatoriedade do nosso caos tivesse encontrado uma razão. É tudo uma ilusão, na verdade. Nada do que nós fazemos será lembrado no grande contexto das coisas. Mas temos uma oportunidade única. A oportunidade de, por um breve período, um segundo cósmico, participarmos nesta peça em que somos todos atores nas mesmas circunstâncias existenciais.
E é libertador que o Universo não tenha centro. Que séculos e séculos de História não importem. Que tudo valha tanto como o momento que estamos a viver. Um dia as muralhas cairão, os barcos enferrujarão e as estátuas cederão aos caprichos dos elementos. Tal como nós. E acho que foi isto que Ziggy Stardust sentiu quando soube que só restavam cinco anos de vida ao planeta e, no meio do pânico instalado, só conseguia pensar na rapariga que estava a beber um milkshake. Ou quando Roy Batty, depois de todas as maravilhas tenebrosas que viu, só queria mais tempo para poder ser humano.
Não há um sentido da vida a que nos possamos agarrar. Não há um depois. Não há um plano. Se há alguém para nos salvar de nós próprios, para me dizer que estou errado, está demasiado longe. A beleza da vida é que era absolutamente indiferente existirmos ou não. Mas, entretanto, estamos aqui. E, se estiverem dispostos a aceitar, é a única salvação que vos posso oferecer.