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Crónica

Eurovisão: Nem sempre assim se cantou o fado

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O festival da Eurovisão 2020 foi cancelado.

O concurso à escala europeia (e além-fronteiras amigas) estreou-se a 24 de maio de 1956 e foi-se moldando até ao formato festivaleiro que hoje conhecemos.

Portugal pisou tais palcos, pela primeira vez, na edição de 1964, contando até à data com 51 participações e registando apenas cinco faltas de assiduidade. Quanto à falta de comparência, o professor pediu a caderneta e Portugal tem-se demonstrado um aluno fiel e até mais competitivo. Quando se sente o sabor de uma nota máxima, surge a vontade de trabalhar para a repercutir.

De facto, até 2017, Portugal exibia um recorde pessoal equivalente a um confortável sexto lugar. Contudo, no ano da concretização das profecias, o “prometido” Salvador extrapolou uns quantos degraus e posicionou-se num honroso primeiro lugar.

Depois de tantos anos em contínuo insucesso, a vitória à la portugaise alastrou-se num hino de contentamento e orgulho, mas o que se seguiu, nos dois anos ulteriores, colocou-nos, uma vez mais, à secretária dos alunos com nota negativa. É caso para dizer que 2017 foi um ano que valeu “pelos dois”.

Originalmente, o concurso pretendia ser o reflexo de uma Europa unida e cresceu nessa ótica. Contudo, atualmente, qualquer membro da EBU pode participar no concurso, mesmo que não seja um país europeu, juntando assim à lista de possíveis participantes países de outros continentes, como Marrocos, Austrália e Turquia, que já participaram no concurso.

Todavia, fica por entender por que é que este festival, numa ode à música e à diversidade, não é retrato de uma fusão cultural de influências emergentes de cada país.

Rebobinemos. Nem sempre a máxima seguida pelos participantes foi cotada por notas gritadas, instrumental com recurso abusivo a sons histéricos, eletrónicos, desprovido de harmonia e originalidade (estilo música de carrossel que cria um martelar na cabeça sem direito a indeminização).

O nosso país exportou vozes sublimes, letras acutilantes, composições musicais bem orquestradas.

Noto que no tempo em que Salazar era ” quem mais ordenava” as manifestações de qualquer tipo de opinião ou vontade eram inspecionadas sob pena de serem reprovadas com a nota implacável da censura. Ainda assim, algumas letras passaram impunes, pela excelência que a sua escrita consubstanciava. O recurso a figuras de estilo e a um enredo fantasioso, encobria a real mensagem, na qual se teciam críticas e se exprimiam desgostos.

A letra que mais me apelou ao sentido analítico foi o tema “Cavalo à solta” apresentado no ano de 1971, interpretado por Fernando Tordo e escrito por José Carlos Ary dos Santos. A canção inicia num vocativo ” Minha laranja amarga e doce/ Minha pena”, aclamando, naturalmente, esse Portugal espremido como um citrino, onde a par de um azedo sentimento de impotência, permaneceu a esperança de um povo-vitamina!

Numa conjetura político-social em que a liberdade de expressão não constava da lista reduzida de direitos, todo os meios em que a palavra aflorasse eram armas. A urgência incessante de cantar um sentimento coletivo, de insatisfação, apelava a métodos criativos do uso da linguagem. A arte ganhava vigor face ao desafio perante o criador.

Graças às “armas e barões assinalados” beijados por cravos no mês das mudanças (ou águas) mil, não há agora temas inacessíveis nem opiniões atiradas para a fogueira por agentes de fiscalização. Se queremos contar uma história, podemos dizê-la com as palavras que mais nos aprouver, recorrendo ou não, a figuras literárias (isso já são opções estilísticas) mas sem que estas sejam escravas do nosso fingimento sofrido.

Agora que se pode dizer tudo, opta-se, muitas vezes, por dizer quase nada. Pior, por não fazer sentir nada.

E sem o propósito da emoção ou da intenção de nos sugar do ecrã para uma estória, o festival da Eurovisão é, então, apenas um palco de grandes proporções, com efeitos luminosos perigosos para epiléticos, performances desfocadas pela rapidez e excesso de acontecimentos  em simultâneo, e música frita-neurónios. Seguem-se as várias atuações e as surpresas são poucas. A mesma receita é utilizada permanentemente por quase todos, em cada ano.

Retorno à questão de origem: por que é que este festival, numa ode à música e à diversidade, não é retrato de uma fusão cultural de influências emergentes de cada país?

Podemos apontar muitos fatores, mas não é para estudar este fenómeno que me debruço sobre este tema.

No entanto, quero já sacudir da toalha o argumento da falta de gosto requintado e de sensibilidade para as artes.

Perante um festival de música, as pessoas, naturalmente, preferirão música a estas melodias mal estruturadas num disfarce estridente.

Depois, os locais de cada país candidato teriam mais orgulho em exibir as suas raízes culturais, as partículas de que são feitos nesta área, ao invés de sons importados de fórmulas sem história.

Nesta ideia, seria somente partilhar a identidade que cada país tem, para além do ADN europeu, numa mesa onde se serve música. Cada prato, sendo diferente, não teria de deixar de ser uma junção de sabores inovadora, para quem nunca dele se serviu.

Assim, é um banquete reduzido a três pratos fast-food, que já todos conhecem, já todos se cansaram de provar e que, ainda por cima, é sabido não ser saudável prolongar essa dieta.

E dito isto, vou ouvir o novo álbum do Salvador Sobral, que tão bem soube servir um doce convencional, de receita emprestada (mas regional) e retirar-se, com inteligência, para se dedicar às tartes da sua autoria.

Não tenho pena de que a Eurovisão tenha sido cancelada porque, na verdade, eu já assisti ao que não chegou a acontecer este ano. E não gosto do sabor.

 

Márcia Branco