Crónica

Luís, Delfim de França

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No final do século XVIII ocorreu na Europa um dos mais marcantes eventos da história mundial – a Revolução Francesa. Alicerçada no ideal democrático e republicano, na abolição dos privilégios dos aristocratas e dos poderes desmesurados da igreja católica, assente nos princípios iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade e na crença fundamental de que o Homem possui certos direitos inalienáveis, a Primeira República Francesa demorou quase dez anos a ser construída, apenas para ruir poucos anos depois da sua proclamação, suja para sempre pelo sangue de dezenas de milhares de franceses, vítimas de um radicalismo despótico encabeçado por Robespierre, que ensombrou toda a França durante dez meses.

Em agosto de 1792, um ano antes do início do denominado Período do Terror, o Palácio das Tulherias, residência da família real, foi invadido por uma multidão de centenas de parisienses em fúria. Dias depois, o rei Luís XVI, a rainha Maria Antonieta e os seus dois filhos – Luís Carlos e Maria Teresa Carlota – foram formalmente detidos e encarcerados numa fortaleza nos arredores da cidade. No mês seguinte, a monarquia foi abolida e todos os títulos reais foram extintos. Luís XVI, “re-batipzado” com o nome Luís Capeto (apelido alusivo à casa real medieval que acabaria por originar a dinastia Bourbon), acabou por ser executado na guilhotina no início do ano seguinte pelo crime de alta traição contra o Estado Francês. Maria Antonieta, rainha consorte, conheceu o mesmo destino que o marido em Outubro do mesmo ano. Maria Teresa Carlota, na altura com catorze anos, acabaria por sobreviver ao Período do Terror depois de três anos na prisão, tendo apenas descoberto o que aconteceu à sua família depois de ficar em liberdade.

Luís Carlos tinha apenas sete anos quando foi preso com a sua família durante a Revolução. Depois da execução do seu pai, o delfim foi separado da mãe e da irmã e entregue aos cuidados de um sapateiro parisiense que recebeu ordens para fazer o pequeno príncipe se esquecer das suas origens. Relatos da época afirmam que durante a sua estadia em casa do sapateiro a criança terá sido castigada fisicamente e violada repetidamente por prostitutas para que lhe fossem transmitidas doenças sexualmente transmissíveis. A criança foi ainda obrigada a assinar documentos que acusavam a sua mãe, Maria Antonieta, de abuso sexual e incesto – tais documentos serviriam mais tarde para agravar as acusações contra a rainha e reforçar a sua condenação à morte. Mais tarde, o sapateiro seria descrito como um monstro por Maria Teresa Carlota nos seus diários.

Aos oito anos, Luís Carlos regressou à prisão. Foi posto numa jaula escura e deixado à sua sorte durante seis meses, período durante o qual ia recebendo as suas refeições por baixo da porta da cela enquanto as suas fezes e urina se acumulavam à sua volta. Ao fim destes seis meses, foi dada à criança o privilégio de fazer pequenos passeios no terraço da prisão. Luís continuaria preso até ao dia da sua morte, aos dez anos de idade. Ironicamente, a criança morreu de escrófula, uma doença curada (segundo a mitologia) pelo toque de um rei. Durante a autópsia, o médico responsável relatou também a quantidade enorme de cicatrizes que cobriam o corpo de Luís Carlos, fruto dos espancamentos repetidos que este recebeu enquanto esteve preso. O coração do delfim foi retirado, preservado e, em 2004, depois de muitos desencontros, enterrado ao lado dos seus pais na basílica de Saint Denis. O seu corpo, enterrado numa campa sem nome, nunca foi encontrado.

Conheci esta história por acaso, há muitos anos, e já não me lembro bem em que contexto. Dei por mim a recordá-la involuntariamente no dia em que anunciaram a descoberta do corpo da Valentina, uma menina de nove anos brutalmente assassinada pelo pai, em Peniche. Quando comunicaram o aparecimento do corpo senti um enorme nó na garganta. Não existem palavras para descrever o absurdo da morte de uma criança, ainda por cima uma morte tão cruel e tão hedionda, e o meu peito fica carregado só de escrever sobre este assunto. A Valentina tinha nove anos. Andava na escola, no quarto ou no quinto ano, e, pelas fotografias que aparecem nas notícias, gostava muito de gatos. Tinha um sorriso lindo e alegre, como é tão frequentemente o caso das crianças. Pela frente tinha a sua vida inteira – aniversários, amizades, uma possível ida para a faculdade, namorados e, possivelmente um dia, filhos. Tudo lhe foi roubado.

Serve a presente crónica para expressar o meu profundo pesar pelo falecimento desta criança. Infelizmente, nada a irá trazer de volta para a sua mãe e para o seu avô. Dostoievski acreditava devotamente na pureza infinita das crianças e acreditava também que a beleza salvará o mundo.

Valentina e Luís, lamento imenso que não vos tenham dado tempo suficiente para o salvarem.

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