Artigo de Opinião

Às nossas Marias da Revolução!

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Autora de diversas obras, que atravessam vários géneros – desde contos, romances e poesia, à escrita dramática e aos argumentos para cinema –, Maria Velho da Costa ficou para sempre ligada à obra emblemática ‘Novas Cartas Portuguesas’. Neste livro, a par das restantes coautoras e companheiras de lutas, Maria da Costa expôs a realidade portuguesa da época, a repressão ditatorial, o poder do patriarcado católico, o machismo e a discriminação reiterada, que colocava as mulheres numa situação de desprivilégio e submissão. Denunciou ainda a violência e as injustiças geradas na guerra colonial e as dinâmicas colonialistas portuguesas. Considerado um “atentado à moral pública e aos bons costumes”, o livro foi censurado pelo regime ditatorial português e as autoras foram perseguidas e arguidas num processo, que só foi suspenso depois do 25 de abril de 1974. Nessa ocasião, a causa das Três Marias gerou uma onda de solidariedade internacional.

Maria Velho da Costa era uma mulher livre, inconformada e desafiadora, que aspirava que a sua liberdade fosse considerada, reconhecida e também vivida por outras mulheres. Inspirada por ideais revolucionários, Maria Costa fez das suas palavras uma espécie de megafone pelo qual expressava o seu desejo pela emancipação feminina. As suas posições públicas e a sua arte notável, feita de emoção e insubmissão, foram um grito em tempos de silêncio tenebroso.

Com o desaparecimento desta artista singular, algumas perguntas poderão emergir: qual a influência que Maria Velho da Costa teve na sociedade portuguesa, em particular na reflexão e no debate feminista? Que inspiração trouxe, que fez desassossegar as mentes sombrias do machismo e do fascismo em Portugal?

Maria Velho da Costa viveu num tempo obscuro e teve a audácia de lutar contra o nevoeiro de um conservadorismo decrépito e de uma ignorância violenta. Através de letras revoltas, de desenhos de palavras poéticas, da ousadia das suas mensagens épicas, ela denunciou o que não podia, durante o regime ditatorial, denunciar. Mas que foi determinante para a mudança do percurso do país, que se desejava livre. De olhar atento para o mundo, de mente acordada e de voz elevada, Maria Velho da Costa desnudou um sistema que asfixiava e, por vezes, que ainda asfixia corpos, existências e resistências. Reivindicou a partir do seu universo autorreflexivo e dramático, a urgência da emancipação feminina e do direito a ter direitos. Alimentou as forças e os confrontos necessários para agitar o sistema político e social, e indagar a realidade através da sua arte. Munida de emoções e reflexões viscerais sobre a forma como sentia e pensava a realidade, a escritora manifestava um realismo sobre intimidade, que incorporava uma dimensão transversal.

Reafirmando a ideia de que o pessoal é político, a expressão dessa intimidade reclamava ação, libertação e uma rutura com o torpor da sociedade. Desta forma, Maria Velho da Costa semeou aquilo que foram as primeiras expressões do feminismo português e apropriou-se das palavras para fazer ecoar a sua voz. E essa voz rica de realidade e imaginação, de intensidade e paixão, inspirou e inspira tantas outras Marias da Revolução! Tão fundamentais nas imensas lutas e causas de hoje ainda por conquistar. Desde a reclamação por mais igualdade e humanidade, por justiça e inclusão social, numa dimensão mais plural, polifónica e intersecional.

A sua escrita, reclamando um caráter mais enunciativo do que narrativo, conduz irreverentemente à reflexão, à indagação sobre a vida e à incitação a um despertar para uma mudança possível.

Em jeito de homenagem a uma Mulher que não só fez parte da Revolução, como era a Revolução, eis parte do texto de “Mulheres e Revolução” de Maria Velho da Costa:

“Elas fizeram greves de braços caídos.

Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.

Elas gritaram à vizinha que era fascista.

Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.

Elas vieram para a rua de encarnado.

Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.

Elas gritaram muito.

Elas encheram as ruas de cravos.

Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.

Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.

Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.

Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.

Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.

Elas choraram de verem o pai a guerrear com o filho.

Elas tiveram medo e foram e não foram.

Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.

Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.

Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.

Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.

Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.

Elas disseram à mãe, segure-me aí os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é.

Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.

Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão.

Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.

Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam.

Elas acendem o lume.

Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.

São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.”

 

Artigo de Ana Garcia

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