Devaneios

Encontro

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Lembro-me de ser criança e estar confortavelmente sentada no banco de trás do carro dos meus pais. Em longas viagens, olhava pela janela e achava sempre que me seguias. Que talvez quisesses acompanhar-me até ao destino planeado. Nas horas longas que pareciam intermináveis para a minha impaciência de criança, encontrava em ti uma companhia. Um sinal de que nem o tempo mais comprido é capaz de nos levar ao desespero. Olhava para os outros carros e questionava como conseguias segui-los a todos de uma maneira tão nítida e presente como me seguias a mim. Via-te como uma espécie de Deus, força suprema. Impressionava-me com a tua omnipresença. Eu era apenas um corpo minúsculo perante a vasta dimensão do que me rodeava, mas colhia em ti uma grandeza capaz de me preencher. O meu universo era ali, naquele lugar em que hoje já não me sento, na criação de uma fórmula que englobava todos os bonitos pormenores que se absorviam em mim.

Hoje, a noite desce e vejo que não me abandonaste. Conforta-me saber que não sou a única a observar-te. Tu desmentes essa ideia de que estamos sozinhos no mundo. A maneira como nos apareces só e nos fazes, ainda assim, reconhecer a universalidade, a vida e a união. Olhar-te é como ouvir uma dispersão de mim. Essa imagem intensa que criei de ti com a perda da luz do dia e que me lembra tanto da naturalidade de sermos. Ninguém caberá algum dia na tua perfeição. O teu esplendor vive fora de ti e traz tanto para dentro de nós. Ainda te olho pelo vidro de trás do carro e observo a tua doce imagem. Tu lá, alta e brilhante, no teu escuro trono. Apareces incompleta, muitas das vezes, sem a metade que te unifica. A junção das tua partes forma uma ligação termântica, semelhante a abismos inimagináveis, cicatrizes antigas, revolta e aceitação, deslumbre e descoberta, pressa e calma, suavidade e loucura, todo o sentido do mundo e a falta dele, perdas, limites… e amor. Tudo o que nos pode atirar para um abismo, mas sempre com sabor a esperança. Um fenómeno sobre-humano, místico, cuja existência não cabe de modo pleno na junção de meras palavras.

Já não digo que segues o meu carro. Ou os outros carros. Hoje, sou eu que te sigo. Só o olhar-te me traz tanta paz, que encontro constantemente os meus olhos à tua procura. Não te culpo por já não me seguires. Os anos passaram e apercebi-me que as coisas deixam quase sempre de nos seguir. Se as desejamos, temos de ser nós a procurá-las. Se, por vezes, não conseguir encontrar o completo de ti, sei que deixarás um manto prateado espelhado nas águas que correm aos meus pés e refletem os sonhos que não conseguiram viver dentro das fronteiras. Há dias que têm de ser assim. O não encontrado não deve ser a barreira. O não encontrado é o que, na verdade, estava a fazer falta.

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