Crónica

A Voz de uma Geração

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No dia 13 de outubro de 2016 foi anunciado ao mundo o vencedor do prémio Nobel da Literatura desse ano. Ainda me lembro como se fosse ontem. Sara Danius (entretanto falecida), secretária permanente da Academia Sueca, abriu as famosas portas brancas e douradas do salão principal da Bolsa de Estocolmo (que segundo a lenda só são abertas duas vezes por ano) e encontrou à sua frente uma multidão de jornalistas expectantes. Silêncio. Seguiu-se então o anúncio: primeiro em sueco, depois em inglês, francês e, finalmente, em alemão – “O vencedor do prémio Nobel da Literatura de 2016 é Bob Dylan – por ter criado novas formas de expressão poética dentro da grande tradição musical americana”. O salão irrompeu num misto de aplausos e ruídos de máquinas fotográficas; ouviu-se um longo “Oh!” de genuíno espanto. A Academia tinha, pela primeira vez na sua história, atribuído o prémio a um escritor de canções. Mas recuemos alguns anos (cinquenta e cinco, para ser exato). Robert Allen Zimmerman, natural do estado do Minnesota, chegou a Nova Iorque no pico do inverno do ano de 1961 “num Impala de 57’ de quatro portas – direto de Chicago (…) atravessando a correr as vilas fumarentas, por estradas sinuosas, campos cobertos de neve, sempre em frente e para leste, atravessando as fronteiras estaduais do Ohio, do Indiana, da Pensilvânia, uma corrida de vinte e quatro horas, dormitando a maior parte do tempo no banco de trás, a fazer conversa fiada” (Crónicas – volume 1, Relógio d’Água). Tinha na altura 19 anos; acabara há pouco tempo de desistir da faculdade, no primeiro ano.  Chegou assim a Nova Iorque – um miúdo com poucos dólares no bolso, viciado em música folk, com uma guitarra às costas e uma harmónica velha no bolso.

Pouco tempo depois começou a tocar em vários bares de Greenwich Village, entre os quais o Cafe Wha, onde iniciaram também as suas carreiras artistas como Jimi Hendrix, Bruce Springsteen, Velvet Underground e Joan Rivers. Nos 5 anos que se seguiram, de 1962 a 1966, Bob Dylan (pseudónimo que homenageia o poeta galês Dylan Thomas) atingiria um estatuto de lenda, apesar de nunca o ter desejado. Com “The Freewheelin’ Bob Dylan”(1963) e “The Times They Are a-Changin’”(1964) – álbuns repletos de imaginário e de sonoridades do folk tradicional americano, de letras antiguerra e apologistas dos direitos civis – Dylan ganhou o epíteto de “a Voz de uma Geração” e tornou-se parte fulcral do mythos americano da década de 60. Depois, em menos de um ano, lança Bringing It All Back Home (1965), Highway 61 Revisited (1965) e Blonde on Blonde (1966) e é apelidado de Judas e traidor por se “afastar” das canções com uma mensagem política e por trocar a guitarra acústica pela guitarra elétrica, sendo que estes três discos são considerados hoje como os mais influentes e importantes daquela década para a música rock. Tudo isto pouco tempo depois de completar vinte e cinco anos.

Poderia, muito facilmente, discorrer interminavelmente sobre a carreira de Bob Dylan, percorrer cada um destes álbuns que mencionei, analisar as suas letras brilhantes, belas e poéticas, que nos falam sobre tudo um pouco – política, justiça, amor… e que muito frequentemente não nos falam de nada em concreto e são apenas exercícios de expressão surrealista. Poderia também enumerar outros discos dele igualmente bons. Mas não o irei fazer. Gostaria, isso sim, de falar um pouco sobre um em particular : The Times They Are a-Changin.

O disco abre com a música que lhe deu o título, uma das mais conhecidas canções de sempre. Cantando com uma voz profundamente nasalada, pouco polida, mas indubitavelmente enérgica, elétrica e acutilante, uma voz tão distinta, Dylan chama-nos a todos nós – povos de todos os sítios, senadores, escritores, mães, pais – para testemunharmos em conjunto uma profética mudança dos tempos. Segue-se “The Ballad of Hollis Brown” uma triste música sobre a pobreza de um agricultor dono de uma quinta na Dakota do Sul cujos filhos já se esqueceram de sorrir por causa da fome, um agricultor tão pobre que gastou o seu último dólar em 7 rondas de caçadeira para ele, a mulher e os cinco filhos. A música acaba, depois, com uns versos cruéis: “There’s seven people dead / On a South Dakota farm / Somewhere in the distance / There’s seven new people born”, que sintetizam toda a insignificância horrível de todo aquele sofrimento. With God on Our Side” percorre anos e anos de guerras americanas, desde a o massacre dos nativo-americanos até ao medo da guerra nuclear com a Rússia, recorrendo ao uso sarcástico do estribilho “com Deus do nosso lado” para marcar posição do seu autor quanto à guerra. “North Country Blues conta, da perspetiva de uma mulher, a vida de uma família de mineiros e as dificuldades por si passadas. “One Too Many Mornings” e “Boots of Spanish Leather” deixam o ouvinte relaxar, respirar e aproveitar duas canções sobre amor. Depois, continuamos com “Only a Pawn in Their Game”, que nos conta sobre o homicídio de Medgar Evers, um dirigente da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor e veterano da Segunda Guerra Mundial. Um ano antes do disco ser lançado, aos vinte e dois anos, Dylan cantou esta canção depois de Martin Luther King proferir o seu famoso discurso I Have a Dream, em Washington D.C, para milhares de pessoas. A penúltima música do disco é, para mim pessoalmente, a mais desoladora. “The Lonesome Death of Hattie Carroll” fala-nos sobre o assassinato verídico de uma empregada de mesa negra de cinquenta e um anos às mãos de William Zantzinger, um jovem branco de vinte e quatro anos dono de uma plantação de tabaco no estado de Maryland. Nos cinco minutos que dura a música aprendemos sobre Hattie Carrol, sobre como se esfolava a trabalhar para sustentar os filhos, sempre na sombra, inofensiva, a limpar e a cozinhar, sobre como um dia foi assassinada à bengalada por um bêbado racista por nenhum motivo em particular e sobre como o criminoso foi condenado a uma pena irrisória de apenas seis meses por ter pais influentes.

In the courtroom of honor, the judge pounded his gavel
To show that all’s equal and that the courts are on the level
And that the strings in the books ain’t pulled and persuaded
And that even the nobles get properly handled
Once that the cops have chased after and caught ‘em
And that the ladder of law has no top and no bottom
Stared at the person who killed for no reason
Who just happened to be feelin’ that way without warnin’
And he spoke through his cloak, most deep and distinguished
And handed out strongly, for penalty and repentance
William Zanzinger with a six-month sentence

O Nobel da Literatura é um prémio, tal como muitos outros, político. E o facto de ter sido atribuído a Dylan no mesmo ano da eleição de Donald Trump não é uma mera coincidência. Dylan e a sua música são porta-vozes de todo um espírito de revolta, de um povo oprimido durante séculos e cuja memória e história foram materializadas em canções – canções estas tão relevantes agora como nos anos sessenta e que são um símbolo maior de uma América dividida, em construção, e um alerta sobre a existência de uma América ainda por cumprir. Hoje, estando talvez tão agitado pelos mesmos problemas de há cinquenta e cinco anos, o povo americano e o mundo vêem nascer novamente a esperança de dias melhores e de uma mudança efetiva, a expectativa de ver cumprido um dos mais belos ideais decretados pelo ser humano: a noção de que nascemos todos, invariavelmente, iguais.

Come gather ’round peopleWherever you roam

And admit that the waters

Around you have grown

And accept it that soon

You’ll be drenched to the bone

If your time to you is worth savin’

Then you better start swimmin’ or you’ll sink like a stone

For the times they are a-changin’

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