Crítica

Baleizão ou o valor da memória

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Baleizão ou o melhor do teatro português – (dois) texto(s)-memória

Mais pela recordação e pela sugestão cultural vos dou a conhecer a obra de teatro “Baleizão – O Valor da Memória” que ontem [dia compreendido entre 27 fevereiro 2019 e 02 março 2019] encheu a plateia do Teatro Carlos Alberto pelas sete da tarde e cuja duração foi de hora e um quarto. Com conceção e direção de Aldara Bizarro e interpretação e cocriação de Aldara Bizarro e Miguel Horta veio a provar-se que o teatro escapa à pretensa morte – digo isto porque, apesar da muita produção dramática, se vê pouco entusiasmo nesta arte por parte de um público homogeneizado, notoriamente à conta de estarmos hodiernamente acostumados a uma absorção de produtos cinematográficos cujo mercado se constrói pela e para a massificação.

Peça modulada no valor inestimável das memórias pessoal, coletiva e afetiva, não esquecendo a diversidade e a disparidade de detalhes que nelas se podem encontrar, usou-se, paradoxalmente, como medida de valor o Baleizão, nota que ora passava das mãos do Miguel para as da Aldara, ora vice-versa. Num tom original de partilha de recordações, muito pessoais, dos anos 70 recordaram-se Luanda, a PIDE, o café de cócegas, o manifesto feminista das Novas Cartas Portuguesas.

Pautada por uma visualidade contagiante, desde lençóis coloridos – tão diferentes entre si – espalhados no chão do palco, aos desenhos feitos no momento por ambos os personagens e projeções de fotografias a preto e branco de uma Luanda muito particular, não ficaram esquecidos o imitar de sons da infância e da adolescência dos personagens-atores – que me proporcionaram um ou outro arrepio de grande satisfação. Houve também gravações anteriormente preparadas e uma certa ostranenia salpicada de humor, cujo ponto alto registo: a frase “Nunca mais faço uma peça contigo”.

A finalidade última desta performance parece ter sido a da formulação de um simulacro do ato mental de recordar. Tamanha empresa passa pelo som, em certa medida, visto que as gravações servem o propósito não somente de ilustrar o que a personagem ouviu, mas de provocar um jogo lúdico em que o espectador vivencia a própria memória da personagem. A implantação dos sons, das fotografias, dos lençóis, do texto, na memória do espectador faz da performance teatral um autêntico monumento em que ver é simultaneamente contemplar um objeto artístico e gravar na mente a perceção de uma memória afetiva que foi, por sua vez, modelada pelas dimensões artística e estética. Por fim, esta será novamente modulada pela nossa capacidade de manutenção e de alteração das recordações, transformando-se, a peça de teatro, em memória afetiva do próprio espectador.

Em suma, que por aqui me fico, um apelo aos que ainda não conhecem a performance. Esta encenação é o que de mais inovador tem havido nas artes cénicas pelo que, caso volte aos palcos, há que vê-la pela primeira vez, para que mais tarde se recorde, revendo-a seja pela memória – como a representação que aqui deixo, ou a de outros, – seja pela mediação de um ato mental e solitário.

São obras destas que nos lembram que, acima de tudo, teatro é presença.

CMS.

[Texto revisto e aumentado a 31/07/20]

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