Crónica
Finais Felizes e Figurinhas Tristes
Finais felizes são aborrecidos. E uma treta. Na verdade, tudo é uma treta, mas os finais felizes têm um cantinho especial na montra de engodos que nos tentam impingir diariamente. É óbvio que ninguém os encontra. Até algum milagre criogénico surgir, tenciono acabar sempre assim as histórias que tenho para contar. Mal.
Talvez a culpa seja minha. Talvez seja do resto do mundo. A taróloga culpou as estrelas. Ou as cartas. Nunca entendi muito bem como o horóscopo funciona, para ser sincero. Guardo apenas um ensinamento roubado descaradamente a um filósofo moderno, Homer J. Simpson. Se a culpa é minha, posso colocá-la em quem eu quiser. E é assim que vou, acompanhado por centenas de milhões de outros seguidores do profeta calvo, enfrentando os meus falhanços.
Que atire a primeira pedra quem nunca fez uma figurinha triste. Romeus e Julietas deste mundo, acusem-se. Eu próprio, apesar do carácter omnisciente que aqui transpiro, já enfrentei a minha quota parte de frases ensaiadas que falharam redondamente. Grandes gestos altamente elaborados que fracassaram, tanto pela forma como pelo conteúdo. E, nunca poderei frisar o suficiente, demasiadas mensagens cuja ambiguidade subestimei antes de as enviar para uma morte certa. Mas a culpa nunca era minha. Era dessa entidade com costas largas, o “momento”. Nunca era o certo.
Toda a estupidez tem o seu engenho, como um relógio avariado também consegue estar certo. E, quando da casca de ovo de um pobre Calimero surge um renovado e confiante Casanova, o “momento” perde o seu regime de bode expiatório. Todos esses “momentos” falhados tornam-se unos, o passado necessário ao sucesso. Os protótipos sacrificados até o modelo final se poder afirmar como produto acabado. Inchados de orgulho, parece-nos que esse sucesso só pode ter uma causa, quem o orquestrou.
Eventualmente, a vergonha baterá novamente à porta. E, com ela, uma lufada da realidade. O Universo caminha para a entropia, nós somos meros agentes do caos. A dado momento, teremos de questionar se a culpa não será nossa. Das nossas decisões. Das nossas precipitações. Teremos de nos atrever a questionar se insistir em algo cujo fracasso está comprovado é uma experiência científica absurda ou simplesmente loucura.
Crescer é deixar de tentar convencer o meu pai que a culpa de ter batido com o carro não é minha. O poste não é o gato de Schrödinger. Se não olhar pelo espelho, ele não deixa de lá estar. Crescer é aceitar que ninguém nos anda a sabotar os finais felizes. Simplesmente temos todos falhas incontornáveis com as quais temos de viver. Apesar disso, não somos obrigados a carregar as dos outros.
É aceitar a responsabilidade pelos nossos erros. Também consiste em recordar, ainda que altamente constrangidos, todos os momentos que vivemos que suscitaram uma onda de vergonha alheia nos transeuntes que nos observavam (e nos poucos neurónios, o último reduto com noção de um sistema nervoso em colapso, que enviavam as sinapses necessárias para nos fazer corar). Devemos aprender com eles. Até parecerem memórias de outra pessoa na qual já não nos revemos. Não somos obrigados a caminhar com os nossos falhanços às costas, basta-nos guardar as conclusões úteis. Como cábulas para um teste.
De auxiliares de memória na mão, parecemos prontos a escalar a montanha. Estamos enganados se julgamos que podemos conquistar o seu cume. Ninguém pode. Não sabemos ainda, mas um dia contemplaremos a verdade. Somos Sísifo, condenados a ver a nossa obra desmoronar-se. Já perto do pico, a pedra rolará de novo para o sopé. De pouco nos serve a revolta nestes casos, Camus pode guardá-la para si. Sabemos apenas uma coisa. Vamos empurrar a pedra outra vez. E mais outra. Até já não conseguirmos mais.
Como Pinky e The Brain, se preferirem uma versão mais moderna do mito, todas as noites, apesar dos falhanços recorrentes, voltaremos a sonhar com o domínio mundial a partir do laboratório. Sem desânimos. Se os finais felizes são inalcançáveis, então não importam. Restam-nos os pedaços dos caminhos absurdos que fazemos todos os dias em direção ao que nunca poderemos ter.