Crónica
O Interior de um Cínico
George Carlin disse uma vez que “se arranharmos a superfície de um cínico encontramos um idealista desapontado.” Esta frase sempre me despertou uma grande curiosidade, talvez por a achar extremamente certeira.
Ora, a origem da palavra “cínico” vem do grego kynikos, que siginifca “igual a um cão”. Esta designação foi primeiramente utilizada como um insulto a um grupo de filósofos da Grécia Antiga que rejeitava as convenções sociais, tomando a decisão de viver nas ruas, através de uma vida simples.
Contudo, os cínicos acabaram por aceitar e adotar este nome por acharem que os cães representavam perfeitamente a sua filosofia: assim como os cães levam uma vida sem qualquer tipo de pudor ou necessidades de luxo, os cínicos viviam com um sentimento constante de indiferença, querendo abolir qualquer tipo de pudor relacionado com situações naturais ao ser humano. Assim, os mais radicais comiam, bebiam e faziam as necessidades em público, chocando aqueles que por eles passavam.
Rejeitavam a sociedade, a família, o dinheiro, a higiene e todas as outras convenções sociais, criticando a ganância e a ambição e defendendo que apenas a virtude nos traria felicidade. Com o passar dos séculos, foi-se dando um maior destaque a esta componente do cinismo, o que levou à designação que lhe é atribuída desde a Idade Moderna.
Atualmente, se formos procurar o significado de “cinismo” no dicionário o que nos aparece é “1 falta de vergonha; descaramento 2 sarcasmo”.
Hoje em dia, um cínico é alguém que adota uma atitude de desdém ou desprezo cansado e uma desconfiança profunda relativamente às intenções e à integridade dos outros.
A questão que eu quero trazer para este texto é a seguinte: porque é que os cínicos são assim? Voltando à afirmação de George Carlin, os cínicos são pessoas desiludidas, seja com relações amorosas, sonhos profissionais ou com a vida em geral.
A sua filosofia funciona como uma espécie de escudo contra o sofrimento. Contudo, por baixo de toda a frieza que emanam está uma insegurança gritante e o medo de desejar alguma coisa que acaba por correr de uma forma menos satisfatória do que o esperado. Isto é aplicável a qualquer situação, seja ela uma coisa importante, como uma entrevista de emprego decisiva, ou algo simples, como uma festa de aniversário.
Assim, os cínicos procuram criar expetativas tão baixas que acabam por não esperar nada de ninguém. Eles desiludem-se a si mesmos antes que o mundo o possa fazer por eles. No fundo, acaba por ser uma situação de controlo: eles é que escolhem como e onde vão ficar desiludidos, em vez de serem “apanhados na curva” e terem de lidar com o choque da desilusão repentina.
Por detrás de todas as tentativas incessantes de verem o mundo da forma mais objetiva e fria possível, está também uma tentativa desesperada de esconder as suas próprias vulnerabilidades e inseguranças.
Muitas vezes a origem destes sentimentos vem de algum tipo de trauma psicológico, seja porque foram gozados na escola, ou porque não conseguiram viver sob as expetativas dos pais, ou, até, porque perderam alguém demasiado cedo.
O leque é muito vasto e as origens de um cínico podem estar relacionadas com uma data de coisas, porém o resultado é quase sempre o mesmo: os cínicos escolhem esconder as suas histórias de fragilidade e não as contam facilmente, preferindo, antes, falar sobre como o mundo é um lugar horrível e injusto, justificando com os diversos exemplos de corrupção, ganância e maldade que, volta e meia, vêm ao de cima.
“O amor é uma coisa que só existe em romances e a amizade só existe por pura conveniência.” “O Governo e as grandes empresas fazem de nós o que querem e estamos constantemente a ser usados para os seus propósitos.” “No final morremos e, aos poucos, toda a gente deixa de se importar ou, sequer, de pensar em nós. Simplesmente deixamos de existir e ninguém quer saber.”
Um cínico nunca é 100% cínico, pois passa a vida a tentar ultrapassar a esperança e os desejos que existiram no seu passado. O que um cínico realmente quer mas nunca pede, porque acredita que é algo que nunca lhe darão, é bondade e compreensão. Só assim é que o coração de gelo que este procura tão desesperadamente esculpir se pode vir a derreter e o “idealista desapontado” de George Carlin dará lugar ao idealista esperançoso que o cínico foi uma vez.