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Crónica

Aprendemos com a didática do coronavírus?

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Quando a crise estoura, uma súbita conscientização floresce e percebemos aquele óbvio escondido debaixo do tapete. Assumimos os nossos erros como sociedade, as mazelas que alimentamos, as desgraças que ignoramos. A lucidez, finalmente, visita-nos e conseguimos enxergar que já vivíamos uma pandemia antes desta. Orientamo-nos à mudança, reconhecemos a urgência de mudar hábitos, criamos uma comunhão planetária e gritamos em nervos de dentro de casa que sim, aprendemos o que o novo coronavírus nos veio dizer! Mas quando a pressa para voltar à normalidade – por mais equivocada que esta seja – nos assola, tendemos a incluir tudo forçadamente a um novo habitual: banalizamos a morte, os contágios e as possibilidades de novas crises. Logo, com a venda nos olhos e a vassoura na mão, voltamos a sujeira para um lugar onde não nos incomode.

Porque o tempo urge, amigo. E o neoliberalismo não dá espaço para questionamentos. Se antes reavaliamos as prioridades, agora já somos máquinas de novo na ansiedade para produzir. Se queríamos valorizar cada profissão como imprescindível, hoje sucateamos aquelas que ainda resistem, exploramos e sugamos até a última gota de suor. Quanto à mudança na alimentação, a redução da carne, a problemática que gira em torno dos vírus, quem sabe na próxima segunda-feira?

Deixas para depois, pois essa pandemia já aprendemos a ignorar, assim como as outras. Uma dessas que vivemos, que ocorrem lentamente, como a crise ecológica – provinda de uma exploração absurda dos recursos naturais. Uma das urgências que o vírus tentou alertar é que já vivemos outras pandemias, inclusive mais letais – a poluição atmosférica, por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde, mata anualmente cerca de 7 milhões de pessoas. A crise dos imigrantes, contabilizou mais de 70 milhões de pessoas forçadas a fugir da guerra e da extrema pobreza no ano passado. Desse número absurdo, 110 mil eram crianças viajando sozinhas. Sozinhas em campos de refugiados enquanto as fronteiras fecham, enquanto a ajuda se nega, enquanto “cidadãos” acham que isso é problema dos outros, não nosso. Sempre o problema é alheio a nós, não é? E é sobre isso que o coronavírus veio advertir.

O enfrentamento contra a pandemia evidenciou como os ideais coletivos são secundários e como as prioridades estão totalmente ao avesso da vida humana na Terra. É por essa e outras lições que necessitam de atenção, que o sociólogo, professor e diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura Sousa Santos, lançou o ebook “A Cruel Pedagogia do Vírus”.  O ebook discute sobre os impactos sociais da pandemia e a iminência da reformulação do sistema político e económico para sobrevivermos enquanto sociedade.

Com maestria, Boaventura relembra-nos os aprendizados do novo coronavírus para além do óbvio: Embora a quarentena tenha trazido reflexões pessoais para cada indivíduo, ela possibilita a conscientização coletiva e política também. Segundo o professor, a pós-crise será dominada por mais políticas de austeridade e maior degradação dos serviços públicos onde isso ainda for possível. Isto porque o neoliberalismo impõe às áreas sociais, como saúde, bem-estar e educação, a prioridade económica. A consequência disto é a cultura de demonização dos serviços públicos, a diminuição das políticas sociais, a privatização da saúde, e outras sequelas do capitalismo que inviabilizam o estado bem estar social, imprescindível para resolver crises sanitárias.

Essa política é autodestrutiva. Os governos de extrema-direita falharam mais no combate à pandemia do novo coronavírus. Ficou evidenciado – principalmente por Jair Bolsonaro e Donald Trump – como a população é descartável para a economia não parar de girar (claro que quando lemos “população descartável” trata-se de uma parcela vulnerável da população, o retrato do colonialismo inserido num darwinismo social: sobrevivem os socialmente mais valorizados). Esses governos minimizaram a pandemia, ocultaram informações, desprestigiaram a ciência e encaminharam túmulos e mais túmulos para um luto que provavelmente não serão responsabilizados. Então quem se responsabilizará?

Boaventura tem razão: é cruel a pedagogia do novo coronavírus. Essa didática dói. Mas ainda assim, todas as lições da pandemia, citadas ou não citadas, aprendidas ou não, suscitam uma ideia central: mudanças são possíveis. Adaptamo-nos à quarentena, reinventamos trabalhos e modos de vida e percebemos que há outras alternativas para além do que nos é apresentado. Não são só palpáveis, como necessárias. O aviso prévio já temos: se não aprendermos com esta crise, nunca sairemos das reticências dela.

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