Crónica
Um brinde a 2020
31 de dezembro de 2019. Brindávamos a um novo ano. Pedimos desejos, elevámos as nossas ambições e idealizámos novos cenários. Não imaginámos que os meses seguintes se revelariam num longo e indecifrável episódio de Black Mirror.
O começo de um novo ano pode passar despercebido para muitos, pode ser uma entrada motivacional para outros e, para alguns, pode ser um momento catártico, capaz de transformar cismas ultrapassadas em ideias revolucionárias. Há quem use este momento de “viragem” para fazer promessas a si próprio: prometendo esforçar-se mais, procrastinar menos, comer menos açúcares e mais bróculos… Há algo na mudança de ano que desperta um sentimento de renovação no ser humano. Talvez por se convencionar que o mês de janeiro é o início do ano. Mas o que sabemos nós sobre inícios? Apesar das dúvidas espaciotemporais, a mudança de ano é um momento de autorreflexão que leva muitas pessoas a alterarem pequenas atitudes do seu dia a dia, sendo algumas apenas temporárias e outras prendendo-se ao nosso corpo por mais tempo do que imaginaríamos. A verdade é que nenhuma alma viva imaginou, às 00:00 do último dia de 2019, que o ano para onde seríamos “lançados” seria tão diferente de todos os outros que até agora tínhamos vivido. Naquele momento, os nossos obstáculos futuros eram a dieta que iríamos ter de fazer depois dos doces devorados, ou os dias cinzentos que iríamos ter de enfrentar sem vontade de sair de casa e ir trabalhar. Nunca pensámos que, afinal, os nossos obstáculos futuros seriam ficarmos isolados durante meses, adiarmos eventos, festas de aniversário, festivais de música e saídas com amigos, ou termos de lidar com um novo acessório todos os dias que não nos permite ver se uma pessoa está efetivamente a sorrir ou não. E, para alguns, o obstáculo frívolo de encarar uma doença que obriga ao isolamento social e que pode trazer repercussões sérias para a saúde. Quem diria que brindámos a isto? Podia ser pior. Há sempre esta premissa pronta a ser usada em momentos difíceis. Afinal, é tudo uma questão de perspetiva.
Desconhecemos o rumo que os próximos meses vão tomar, mas podemos imaginar. Podemos ser pessimistas perante todo este cenário em que nos inserimos (o que é totalmente compreensível), mas também podemos ser otimistas. “O cérebro é mais vasto que o céu.” Quando olhamos para o céu, sentimos que o nosso corpo é minúsculo perante algo tão vasto e misterioso, mas podemos antes pensar que o conceito de céu apenas existe no nosso pensamento, e isso torna-o maior do que o próprio céu. Se pensarmos que o céu é um elemento natural limitado e que o nosso cérebro é um elemento natural capaz de expandir o seu pensamento de forma ilimitada, podemos considerar-nos seres com um elevadíssimo poder, capaz de nos elevar até ao desconhecido. A vida vai-se preenchendo de pequenos acontecimentos que parecem ter pouca relevância, e outros que nos parecem tão determinantes que ocupam grande parte da nossa atenção. Quando mais tarde os relembramos, vemos que deles apenas resta a lembrança. Podemos olhar para a pandemia como um grande acontecimento que assola o mundo hoje, e podemos ver alguns dos nossos atos como algo irrelevante e pequeno ao lado de outros acontecimentos, como quando decidimos usar uma máscara para visitar familiares idosos, ou quando decidimos não aceitar o convite de um amigo para ir jantar fora… No futuro, a pandemia será apenas uma lembrança, que certamente deixará muitas marcas, mas as pequenas coisas que fizemos enquanto indivíduos poderão ter um grande impacto na nossa vida e nas vidas daqueles que nos rodeiam. Afinal, é a isso que brindamos no final de cada ano: ao nosso bem-estar, e ao daqueles que nos fazem sorrir todos os dias, esperando que, no final de mais um ano, possamos olhar para trás e soltar umas boas gargalhadas com a comédia de enganos que fica para trás… E que comédia 2020 vai ser!