Crónica
“O amor é uma luz que não deixa escurecer a vida”
Já passou mais de um mês que o Sr. Rui partiu para um outro reino. Curiosamente, é um reino do qual ninguém voltou, por isso presumo que seja mais bonito que o nosso e tenho a certeza que ele está em paz. Hoje, faria 93.
Confesso que demorei a escrever este texto em sua homenagem, porque o sofrimento da sua perda (a primeira a que nos meus 20 anos de vida tive de enfrentar no meu seio familiar) ainda se misturava com a saudade, mas hoje entendo melhor a vida. E tenho tentado entender a morte, mas percebi que tentar entender uma coisa que só quando estivermos à frente dela é que podemos compreender é bastante inútil, cansativo e penoso.
“A vida é bela para quem anda nela” era das frases que mais dizia, talvez pelo Alzheimer que atormentava, sem ele saber, a sua vida, ou talvez porque entendia o poderoso significado daquela simples frase. De qualquer das maneiras, sentimos as saudades do timbre da sua voz a dizê-la. Nunca tinha pensado bem nessa frase até que a saudade traz à memória tudo o que de bom a vida deste Senhor teve.
Conduzi a quase 170km/h atrás da ambulância que o levou para nunca mais o trazer de volta, mas tive oportunidade de lhe dizer “até amanhã”, na única visita que lhe fiz (porque as restrições de visitas eram muito grandes por causa da COVID-19), no dia antes de ele ter adormecido no descanso eterno. Não sei se ele me ouviu, não sei se ele me entendeu, mas senti que a sua alma estava comigo e que me ouvia e me entendia.
Em vida, dei-lhe de comer à boca, vestia-o e despia-o quando era necessário, limpei-lhe as remelas dos olhos, dei-lhe alguns beijinhos e ele deu-me alguns a mim. Foi a minha mãe, de 3 irmãos, que cuidou dele quando a doença bateu à porta com mais força, e apesar das adversidades do Alzheimer, à noite, como num impulso de lucidez, dizia-lhe “até amanhã se Deus quiser, minha filha, obrigado”. O meu pai dava-lhe banho com todo o respeito que a sua vida requeria, mas às vezes era difícil e o meu pai convencia-o, dizendo-lhe “vamos lá ficar cheiroso para ir às gajas”. Pobre inocente, nunca via cumprida a promessa. O meu irmão sempre foi mais brincalhão com ele e enchia-o de beijinhos e de mimos e, pese embora a doença às vezes o levasse a afastá-lo, às vezes levava-o a ser muito carinhoso e divertido. Deu alguns pontapés à minha gata quando ela se punha no caminho dele, mas apesar de tudo, sei que ela também sente a sua ausência, o quarto vazio, a mesa com menos uma pessoa e o cadeirão da sala vago. Os nossos horários giravam à volta de uma responsabilidade comum: uma vida importante, a mais importante; hoje é confuso não regressar da faculdade para lhe dar o almoço, para lhe dar o lanche, para o ouvir ressonar na sesta que fazia de tarde no seu cadeirão. É confuso não ouvir o aparelho que lhe dava oxigénio durante a noite. É tudo muito confuso, mas as lágrimas são de saudades.
Vamos ter saudades de o ter connosco este Natal, mas vamos sorrir, a pensar no quão felizes fomos por ter tido a honra de partilhar tão sagrada mesa consigo (se quiser, venha comer um bocado de bacalhau; na nossa mesa, cabe sempre mais um, ou não fosse ela sua também). Nem sempre escolho as melhores palavras, mas dizer que o Sr. Rui é para nós a estrela no topo da árvore de Natal, nem é escolha de palavras, é dito com o coração carinhosamente bem perto da boca. É a estrela que nos mostra o caminho e que nós dá a esperança de nos voltarmos a encontrar nesse magnífico reino de celebração da vida. Espero ser digno de nele entrar.
Este Senhor é parte de tudo aquilo que eu sou e aspiro a ser. Todas as minhas conquistas, todos os meus sucessos, direta ou indiretamente, também os devo a ele. A minha capa negra, que me cobre o traje, hoje tem um rasgão no meio. O título que dei a esta minha homenagem, de autoria de Camilo Castelo Branco, justifica-o: “o amor é uma luz que não deixa escurecer a vida” – e todo o amor que nos deu, não deixa escurecer nem a mais negra das capas.
Agora eu sei: a vida é tão bela e eu vou andar nela, mostre-me o caminho!