Crónica
Profissão: Tudólogo
Uma espécie interessante subsiste nas fileiras da fauna lusitana. Um ser raro, mas nem por isso frágil. Notavelmente resistente ao agente mais nocivo que conhece: a noção. A comunidade é reduzida apenas por escolha, até porque o seu alcance é nacional e convém não diluir demasiado as audiências. Sempre de fato, podem ser avistados a circular no seu habitat natural, os estúdios em Queluz de Baixo e Paço de Arcos. Conhecemo-los pelos três (quase nunca dois) nomes que escolhem para serem apresentados em horário nobre. Este zoólogo amador que aqui vos escreve batizou a espécie com o título que merece: tudólogos.
Nas veias dos restantes conterrâneos, pulsa também a urgência do comentário não informado, vulgo bitaite. Nunca uma simples opinião. Nunca uma expressão de dúvida. Um comentário como o dos especialistas, carecendo muitas vezes, claro está, de validade lógica e honestidade intelectual. O bom senso é um bem escasso nos dias que correm e parece que assumir que temos de investigar um assunto é um atestado de incompetência aos olhos do público. Tudo isto envolvido, nomeadamente nas caixas para análise da atualidade do Facebook, de facadas à língua de Camões. Pobre fado do poeta, nem zarolho e depois de morto pode deixar de ver o seu nome vir à baila. As minhas desculpas por perturbar o seu descanso.
Daí que não me surpreendam os excelentes resultados televisivos das intervenções destes entendidos em todas as áreas do conhecimento e da metafísica. Em primeiro lugar, são extremamente polarizadoras: há quem os venere e há quem os odeie. Todos os querem ouvir, independentemente das suas motivações. Em segundo lugar, a proximidade do comentário e do comentador praticamente convida à interação do público. Nem que seja através do insulto gratuito. Não é uma palestra, não há explicações detalhadas. Não requer o mínimo conhecimento prévio sobre os assuntos ali expostos. São apenas palavras, um jorro delas, que chovem sobre os espectadores. Sentados no sofá ou à mesa de jantar, cabe-lhes apenas a responsabilidade de reconhecerem a autoridade ao cientista da tudologia que lhes tem chegado por cabo (ou TDT) ao lar nos últimos anos.
Ser tudólogo é também ser cientista, não foi um erro. Veja-se o exemplo de José Gomes Ferreira (o jornalista, não o poeta), formado em Comunicação Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Certamente que se terá equivocado com o tipo de comunicação em que se formou, pensando tratar-se de um engenheiro de telecomunicações, quando sugeriu que o 5G serviria apenas para brincar às tecnologias. Talvez a sua aversão ao progresso tecnológico seja uma consequência direta de, conta-nos o próprio, ter vivido sem eletricidade até aos 14 anos. Questiono-me (retoricamente apenas, uma vez que nunca li a obra), se o seu livro “O Meu Programa de Governo” prevê uma sociedade nómada e recolectora como a civilização ideal ou se já poderemos permitir algum sedentarismo.
A ocupação exige também uma perícia notável nas lides desportivas. Nomeadamente na ginástica e contorcionismo. Luís Marques Mendes, atleta veterano nas artes de moldar a verdade e mergulhar em certos círculos em busca de informação privilegiada (bufologia, como lhe chamam as más-línguas), será o seu representante mais notável. Para além dos prognósticos antes dos jogos políticos, ocasionalmente também envereda em breves excursões ao comentário futebolístico, apoiado no seu glorioso passado como guarda-redes das camadas jovens da Associação Desportiva de Fafe. Mas deixemos para o futuro uma crónica acerca dos comentadores do futebol português, até porque não lhe será esse o maior defeito aqui apontado.
Por fim, a Tudologia é uma religião. Pelo menos no que toca à fé que o tudólogo deposita em si mesmo. Será necessário acreditar é um profeta com ligação espiritual direta a um ente divino, ser superior que puxa os cordéis que regem as esferas do Universo, para agir como Miguel Sousa Tavares. A partir do seu espaço de comentário semanal, deixou conselhos a Biden para o debate com Trump. Sem dúvida que apenas um milagre permitiria que o candidato à presidência dos Estados Unidos da América, cujas faculdades mentais têm sido postas em causa, mas não até este ponto, assistisse aos conselhos que o comentador político português lhe fornecia para vencer o seu adversário.
São apenas três exemplos, mas muitos mais nomes poderiam rechear esta lista. O comentário mal informado não é unicamente consequência da globalização das redes sociais. Nasceu por reconhecermos autoridade de conhecimento a figuras que não o possuem. O comentário não é suficiente, exige-se o debate. Exige-se informação. Exigem-se diferentes fontes e métodos de comprovar o que é afirmado. E temos de começar por o exigir a nós próprios, para não vivermos apenas dos juízos que compramos, já embalados e prontos a consumir, de uma qualquer figura na televisão.