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Artigo de Opinião

Da liberdade à falta dela

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Fonte: Google Imagens

Celebrou-se, em inícios do mês de outubro, a implantação da república portuguesa, achado tardio das revoluções liberais de oitocentos. Se liberdade, nesta época, significava a determinação de direitos políticos e sociais básicos – como consagrados com as primeiras constituições, que asseguram que todos os indivíduos são iguais perante a lei, incluindo quem governa o país, i. e. todos estão incluídos na categoria de cidadão, sem que escolhas arbitrárias de Deus interfiram -, hoje em dia esses mesmos direitos estão constantemente a ser colocados à prova. Não me refiro – para já – aos problemas filosóficos e éticos que a pandemia deste século nos coloca, mas a valores que foram progressivamente enviesados e deturpados e que nos trouxeram excessos tanto do ponto de vista social como do político-económico.

Fala-se frequentemente em liberdade de expressão e em censura, por exemplo. Já se torna persistente o fenómeno de ver quem confunde liberdade de expressão com dizer tudo o que lhes apetece sem respeito pela integridade moral e cívica do outro. Comentários racistas são disfarçados de opinião com base em estatísticas de criminalidade ou ideias feitas, que só indicam a posição de precariedade económica e social de determinados indivíduos. Académicos, professores universitários e intelectuais disfarçam o seu conservadorismo, incitando os estudantes ao diálogo, mas apenas quando estes concordam com aqueles. Partidos políticos assumem-se mais ou menos abertamente como associações prejudiciais a determinado grupo de pessoas, classes ou instituições. Apela-se, na caixa de comentários do Facebook, ao retorno da ditadura, ao paraíso fiscal e imoral das antigas colónias e à deslaicização do Estado. E facilmente se compreende que a linha que separa a liberdade de exprimir uma ideia da liberdade de estar calado é muito ténue.

Portanto, censura e liberdade de expressão andam, paradoxalmente, de mãos dadas, quer queiramos quer não. E vários tipos há de censura. O valor da liberdade implica a consciencialização do valor da responsabilidade social. Ao interagir livremente em sociedade, o indivíduo deverá pensar a maneira como as consequências dos seus atos se refletem na liberdade de outra pessoa. Não é de estranhar, então, que sempre que se fala em liberdade se ouve instintivamente a máxima: a minha liberdade começa quando a tua acaba. E não é à toa que escrevo a frase desta forma e não da seguinte: a tua liberdade começa quando a minha acaba. Numa era digital e altamente materialista, a ênfase que se coloca no individualismo e no hedonismo pessoal é tão grande, que a liberdade (como pensada em oitocentos) estabelecida em relação a uma sociedade – que se pretende igualitária em direitos e deveres – foi progressivamente alterada para uma liberdade individual que pouco ou nada se preocupa com questões sociais.

Desta maneira se justificam as frases imorais de pessoas que não compreendem o papel que a sociedade deve desempenhar como um todo. Refiro-me a pessoas que, porque preocupadas – e em tempos pós-modernos preocupação significa, na realidade, desespero e ansiedade a roçar o crónico – com o próprio umbigo, se esquecem de que determinados investimentos são benéficos a longo prazo, porque são estabilizadores da vida em comunidade. Cabem neste panorama os exemplos de indivíduos que culpam os estrangeiros por ‘lhes roubarem os empregos’, quando a empregabilidade de não-nativos está concentrada em postos de trabalho necessários, mas que os nativos recusam a priori. Outro tipo de discurso semelhante está na liberdade que determinada pessoa toma em dizer que, por exemplo, é mais importante a construção de uma estrada que liga duas grandes cidades, na vez de se investir no interior do país. Por outras palavras, se determinado governo ou entidade não me beneficia direta e largamente esse é motivo suficiente para criticar a própria instituição ou quem é por ela ajudada.

O liberalismo económico, vulgo capitalismo, é outro tipo de liberdade que se tornou no seu oposto. Se não há intervenção do Estado no mercado, constituindo-se assim o extremar de liberdade económica, o excesso concentrar-se-á nas grandes empresas que subordinam as pequenas ao seu poder, comprando-lhes os direitos de autor a troco de taxas mínimas de lucro. Não há regulação interna no mercado livre porque esse equilíbrio é impraticável quando a empresa pequena vai à falência. Nada existe que impeça a exploração em demasia de materiais brutos – florestas, minas de lítio, ouro e outros -, recursos humanos, produtos artísticos ou não. Por outra ordem de ideias, esses espaços, materiais, produtos, deixam de pertencer a todos para serem monopolizados por poucas mãos. Fomenta-se o consumo irresponsável e desenfreado, aumentam-se os custos do produto porque a procura é alta e quem se safa sempre são as classes altas; quem é deixado para trás – não, não quem se deixa para trás, mas sim quem é deixado para trás, já que o sistema fomenta desequilíbrios que se perpetuam – é a classe média, cada vez mais parecida com a classe baixa. A meritocracia, neste sentido, não existe, já que para ser viável, todos os indivíduos do planeta teriam de ter igual acesso às oportunidades. Hoje, a oportunidade aparece apenas a quem a pode comprar.

Chegados a um contexto pandémico, todo o tipo de anti-liberdade disfarçada de liberdade chega à superfície. Daí que haja quem não use máscara, quem já não esconda o seu racismo, quem suspeite de estrangeiros, quem critique o governo por restringir deslocações em tempo de férias – que é quando as pessoas mais se querem deslocar, daí a necessidade de prevenir contágios -, quem critique o governo por ponderar um segundo lock down, quem critique o governo por não ponderar um segundo lock down, quem, enfim, expresse o que ainda não foi digerido pelo pensamento crítico.

A situação de risco para a saúde global obriga-nos a pensar os tipos de censura que existem e se há censura benéfica. Uma resposta que só pode ser dada por um indivíduo que tem consciência social e histórica profunda. Ou melhor, uma resposta que, em momento algum, poderá ser dada por uma sociedade que tem a Liberdade, o Materialismo, o Capital e o Hedonismo como valores mais importantes na sua hierarquia axiológica, porque os três últimos invalidam e sobrepõem-se, necessariamente, ao primeiro, deturpando-o, por fim.

Assim determinamos que o liberalismo se volveu no seu contrário. Eis o neo-liberalismo, em que liberdade significa calcar nos pés dos outros, ignorando a página em que, no dicionário, se define a responsabilidade social.

 

CMS.

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