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Crónica

D10S

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Ninguém é quem queria ser. Até porque ninguém sabe o que quer. Nem o que ser. Procuramos moldar-nos todos os dias para alcançarmos o que pensamos que esperam de nós. Como se um mesmo código de conduta se pudesse adequar para sempre a um mundo em constante mudança. E é um comportamento natural. Limitar o caos. Facilitar as relações com os nossos pares.

Mas o banal padece de si mesmo. Aborrece. Seremos os únicos que se sentem assim? Com vontade de romper com tudo, partir sem destino. Agir impulsivamente, sem pensar nas consequências. Correr desenfreadamente pela rua. Ignorar a dieta. Revelar às nossas avós que não gostamos de ver o programa da tarde. Olhámos à volta, parecem todos tão confortáveis. Não sabemos o que dizer. Calamo-nos e esperamos. Não os queremos aborrecer. Mas há outro caminho.

Se os deuses do futebol decidiram enviar um filho à Terra, o seu nome é Diego Armando Maradona Franco. Um pequeno argentino nascido em Lanús e criado numa villa miseria na periferia de Buenos Aires. Genial. Rápido. Conflituoso. Caótico. Chegou a afirmar, com conhecimento de causa, que a bronca era o seu combustível. Diego terá de ser filho dos seres celestes que regem, entre muitas outras coisas, as linhas de fora-de-jogo e o comprimento da relva. Porque em nenhum toque na bola lhe terá faltado paixão.

Se, por toda a Mergellina,  El Pibe de Oro mantém uma luta acesa com a Virgem Maria pelo maior número de altares erigidos em nome dos seus milagres, a razão estará no seu pé esquerdo. Será um feito notável ser o primeiro caso de sucesso de uma inseminação artificial, mas não haverá registo, pelo menos de acordo com nenhum dos Testamentos, que a Virgem Maria tenha tido influência nos dois únicos Scudettos que o Sul de Itália conquistou. Mas aquele canhoto de cabelo encaracolado, recebido em 1984 por 85.000 no San Paolo, prometeu a salvação a uma região marginalizada. Roubar aos clubes do Norte, após quase um século de calcio, o trono da Serie A. E cumpriu.

A dimensão política do feito de Diego seria também digna de destaque, por ser uma rutura com aquilo que é o reflexo de um país eternamente dividido pelas suas lutas internas. Mas as causas do futebol apelam mais ao meu coração e quem rege as cordas desta ode ainda sou eu. No futebol, pouco importam as origens dos que escrevem a sua História nos relvados. Exige-se apenas que cumpram as juras de lealdade que se fazem aos que observam da bancada. Aos que veem o jogo pelas televisões. Aos que o ouvem nos rádios. Aos miúdos que, por um intervalo de almoço, assumem a identidade do seu ídolo que conheceram numa caderneta de cromos. Maradona deixou-os tocar o céu. E quem ama, nunca esquece.

Desde que abandonou o clube, devido ao consumo recorrente de cocaína, o Nápoles nunca mais venceu um Scudetto. Bem como mais nenhum clube do Sul do país. E foi no consumo de drogas que se afundou. Seguiram-se o alcoolismo e a obesidade. Por cada gota de genialidade com que foi abençoado, uma dose igual de controvérsia. Sempre falou demasiado, sendo essa uma das razões que lhe encurtou a estadia em Barcelona.

Dentro dos relvados, não era apenas a habilidade que alimentava os jornais desportivos. Em Inglaterra, ainda se lamentará o maldito momento em que Maradona, sem possibilidades físicas de roubar de cabeça aquela bola ao guardião inglês, opta por a socar sorrateiramente, tentando disfarçar o gesto. Esta só parou quando tocou as redes. Terá o seu fundo de verdade, pela velocidade supersónica com que orquestrou tal artimanha, a afirmação que o golo terá sido marcado com a cabeça. Quanto à influência da mão de Deus, o certo é que Este nada terá feito para o impedir. Talvez Saramago esteja certo acerca da ausência de um dos seus membros. No entanto, o equilíbrio entre o Caos e o Génio estaria prestes a ser restaurado.

Quatro minutos depois, o maior golo da História dos Mundiais sai dos seus pés. Victor Hugo Morales grita por todos os que ficaram sem palavras, enquanto um pequeno argentino avança, sozinho, com a bola colada ao seu pé esquerdo, deixando atrás de si uma atónita equipa inglesa. Barrilete cósmico, ¿de qué planeta viniste? De que planeta vieste, Diego? Quem és tu para, depois de tantos erros, fazeres brilhar os olhos não só de quem te viu jogar, mas dos que só te conheceram por fitas digitalizadas? Haverá poucos que tenham direito a tanta admiração após um percurso tão errático. Que sejam recordados com tamanha paixão. Mas tu ganhaste esse direito.

E a razão é precisamente essa. Paixão. El Pibe, na sua despedida dos relvados, disse que se equivocou e pagou por isso. Mas o seu futebol não se mancha. Não é um modelo a seguir. Mas a sua frontalidade será digna de nota. Bem como a sua capacidade de admitir os erros. Até porque, depois de os cometermos, não temos outra escolha para além de vivermos com eles. E não haverá melhor maneira de nos livrarmos dos nossos demónios do que os expormos à luz.

Manu Chao está certo. A vida é uma tombola. Entre os números que nos calham neste jogo de sorte e o que fazemos com eles, vamos avançando. Sempre à espera do próximo. Não somos Maradona para vivermos como ele. Mas há algo que este nos pode ensinar.

Que o Mundo é, efetivamente, uma bola que se vive à flor da pele.