Artigo de Opinião

Justiça Obducta

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Com a eleição de Joe Biden para Presidente dos Estados Unidos da América, tem-se levantado uma onda de esperança e otimismo no país norte-americano. A população encara a nova presidência de forma positiva, esperando que alguns temas como racismo, LGBTQ+, alterações climáticas ou igualdade de género possam agora ser mais valorizados, bem como o combate à pandemia Covid-19. Espera-se uma melhoria dos temas que são estruturais na sociedade e um entendimento mais justo dos valores democráticos, no entanto, o legado deixado por Donald Trump não pode ser ocultado levianamente, pois vai continuar muito presente no mundo norte-americano, nomeadamente no sistema judicial. Este sistema, inspirado no sistema jurídico anglo-saxónico “common law”, originário da Inglaterra, transporta quase dez séculos de existência, baseando-se na tradição, no costume e no precedente. Assim, o contexto em que os tribunais norte americanos se inserem está imerso numa conjuntura histórico-política muito específica, alicerçada ao pluralismo geográfico e organizacional do país.

O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nomeou mais juízes para os Tribunais de Apelação na primeira metade do seu mandato do que qualquer outro presidente moderno. As ideias conservadoras partilhadas pelo Presidente e por estes juízes têm sido um fator de discussão nos EUA, uma vez que os Tribunais de Apelação têm a palavra final na esmagadora maioria dos casos federais do país. Nomeados pelo Presidente e com mandatos vitalícios, os juízes destes tribunais assumem um papel muito importante na interpretação e aplicação do Direito Constitucional. Sonia Sotomayor, juíza hispano-americana do Tribunal Supremo dos Estados Unidos, referiu uma vez que “o Tribunal de Apelações é onde a política é feita”. Dada a elevada importância destes tribunais, torna-se pertinente analisar o impacto que Donald Trump teve na sua organização. Quando o ex-Presidente tomou posse, em 2017, a maioria dos juízes do Ninth Circuit do Tribunal de Apelação tinham sido nomeados por presidentes democratas. Estes juízes anularam algumas das ordens executivas mais provocativas de Trump, como o financiamento de emergência para um muro de fronteira. Insatisfeito com essa realidade, Donald Trump substituiu muitos desses juízes ao longo do seu mandato. Essa substituição não foi particularmente difícil, uma vez que, durante a presidência anterior de Barack Obama, os Republicanos foram ganhando muito controlo no Senado, acabando por dificultar a aprovação de muitas nomeações de juízes feitas por Obama. Para além disso, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, impôs um bloqueio efetivo às confirmações do Tribunal de Apelação no momento em que os republicanos assumiram o Senado, ignorando centenas de projetos-lei aprovados pela Câmara e estando disposto a usar todos os meios necessários para garantir o controlo republicano sobre os tribunais americanos. Assim, quando Trump assumiu a presidência, não só tinha uma imensidão de lugares vagos nos tribunais para preencher, como também tinha um Senado maioritariamente controlado por republicanos para o ajudarem nessa tarefa, num curto período de tempo.

Quanto ao Supremo Tribunal, Trump já nomeou com sucesso três juízes, sendo todos eles conservadores rígidos. A mais recente nomeação surgiu após o falecimento da juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, que em tempos disse que o seu maior desejo era não ser substituída enquanto um novo Presidente assumisse o cargo. Este desejo acabou por não ser realizado, uma vez que Donald Trump nomeou logo a juíza conservadora Amy Coney Barret, que tomou posse no passado dia 27 de outubro. A morte de Ginsburg abriu uma vaga que veio cimentar uma maioria conservadora de seis para três na principal instituição judicial do país. Isto tem levantado muitas questões e receios de que o Supremo Tribunal possa vir a bloquear muitos avanços progressistas na sociedade. Estes juízes servirão o país durante anos ou mesmo décadas, pelo que terão um grande impacto no mandato de Joe Biden. Numa época de disfunções legislativas, sociais e governativas, os juízes podem ter um impacto muito forte na formulação de políticas estruturais para sociedade, nomeadamente relacionadas com a saúde, armamento, legislação de assuntos ambientais, pena de morte e direitos de voto. Os juízes conservadores a quem Trump deu nomeações vitalícias irão moldar a lei americana nos próximos anos, elevando-a, provavelmente, a um patamar cada vez mais unilateral. Mas até que ponto este sistema está a trazer benefícios para a sociedade? E até que ponto é um sistema justo? Há quem considere que esta realidade deveria ser alterada, por exemplo, através da abolição dos mandatos vitalícios atribuídos aos juízes dos tribunais de Apelação e do Supremo Tribunal, já que quando os juízes permanecem durante décadas no mesmo meio podem tornar-se isolados e sem contacto com os novos costumes, tecnologias e gerações mais jovens. Para além disso, as nomeações escalonadas permitiriam que todos os novos presidentes tivessem a possibilidade de concretizar mais nomeações, o que, numa ótica partidária, acabaria por ser mais equitativo.

Os cidadãos norte-americanos passaram a aceitar um contexto em que o ramo judicial tem um grande papel na sociedade e, como em tudo o resto, o Direito advém também de fenómenos culturais e históricos profundamente ligados ao desenvolvimento de cada nação, o que faz com que o seu desenvolvimento nem sempre acompanhe a evolução da sociedade. Para além disso, nem todas as decisões e opiniões de juízes acabam por se tornar exemplos de justiça, mas ficam registadas para serem debatidas e dissecadas pelos maiores juízes de sempre – o tempo e a história.

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