Devaneios

O beijo merecido da verdade

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São dez e quarenta e sete no computador da sala de enfermagem, a urgência está levianamente controlada. Será hoje dia de almoçar antes das 18h00 pecaminosas? Espero que sim.

Entra um jovem de setenta e nove anos, dispneia agudizada, saturações a descer por lá abaixo – pulseira laranjinha no punho. Dispneia? – Bem-vindo à Área Covid!

Veste fato de astronauta branco, calça bota de lavrador, um par de luvas, máscara bicuda, viseira à serralheiro, dois pares de luvas até ao cotovelo. Ides pintar paredes ou matar ratos? Nada disso, é a doutora a ir para “os Cóvides”.

Um bom dia imperceptível, observar, percurtir, palpar, auscultar, monitorizar, gasimetria, bota lá o estudo analítico com tudo a que tem direito, cotonete covid claramente, vai ao raio x, faz umas drogas intravenosas. Um ipratrópio em câmara expansora. Está no ir.

Quem é este homem? 

Masculino, 79 anos, autónomo nas suas “actividades de vida diárias” até há quinze dias, quadro de agudização da dispneia com cerca de 12 horas de evolução, história médica passada de carcinoma urotelial há 5 anos, que o diário clínico sugere estar resolvido.

Contudo, não tem ido à consulta de vigilância de Urologia por “adiamento em contexto pandemia covid-19” – cito.

Quatro episódios de urgência desde o inicio do ano por “falta de ar” concomitante com insuficiência respiratória que resolve com medicação. TAC do Tórax há dois meses atrás revela massa condizente com possível lesão neoplásica. É orientado à consulta de Pneumologia. Não a tem “por adiamento em contexto da pandemia covid-19” – cito.

Quem é este homem?

Ferreiro de vocação. Agora reformado, dedica as tardes e manhãs às quatro cabrinhas em casa até há três semanas, altura em que a malfadada falta de ar que começou há um ano mas sem grandes problemas, agora o metia na cama. Fez do neto um ágil homem de vinte e quatro anos a acabar o canudo e orgulhoso curso. Partilhava cinquenta e uma voltas ao Sol com a senhora sua esposa, que me disse tudo isto muito prontamente.

Esta esposa pede muito para o ver. Só lhe quer dar um beijo na testa muito rápido. Não deixo. Não podemos deixar. O marido já entrou nos “covides”, minha senhora, e está na urgência! Por favor, um bocadinho de compreensão. Se a senhora fosse um carrapato de pulseira verde que vem à urgência porque tem um arranhar na goela e acha que é “covide” as portas deste céu abrir-se-iam para si,  mas como é uma humilde senhora a pedir para dar um beijinho, fica aí quietinha. Aqui só facilitamos e ajudamos quem contorna o sistema, minha querida!

Para gerir todas as pessoas daqueles curtos metros quadrados, pedi-lhe que fosse almoçar com calma e com companhia, aproveitando esse tempo para escoar do espaço da urgência as “quebras de tensão”, depois das crónicas criminais antes dos telejornais. Se, entretanto, ninguém entrar na sala de emergência, conto às quinze horas ter mais tempo na algibeira para voltarmos a falar com mais informação sobre o que se passa com o maridão Ferreiro.

Depois da dita hora, as pessoas preferidas segundo a legis familiar da vida deste ferreiro reuniram-se comigo individualmente na entrada do Hospital – mulher, filha, genro, neto que criou. Não há espaço aqui. E também não há tempo, um tempo que era preciso dar a estes quatro para lhes explicar que o marido, pai e avô de até há três semanas – não ia voltar a andar com as cabras, nem a pôr o vinho na mesa, nem a fazer a cevada que tanto gostava e já não conseguia beber  – não ia voltar sequer.  O jovem Ferreiro ia morrer, poderia não ser hoje, mas eventualmente seria. Uma semana, Duas. Com sorte três. Ponderamos internamento não para a cura, mas para morrer digno, confortável e a família conseguir visitá-lo em cânones mais éticos.

À bisturi setecentista dei a má noticia, que era a caída colossal de uma casa inteira. Posso dar-lhe um beijinho? Não respondi. Teria que lhe dar mais um “não”. Já lhe dei vários. Deixei-os ali fora a sucumbir pelo choque. Tantos meses e nenhum médico nos disse nada? Desculpe, mas não pode ser verdade, diz-me o neto. A esposa só quer dar um beijinho, outra-vez. Vem agora esta armada em médica de estetoscópio de cor catraia e de fato verde esquisito.  Despacho um “lamento imenso” apertado e duro a andar de marcha-atrás até à porta da urgência, já não tenho tempo, os doentes estão a acumular lá dentro.

Lá, a enfermeira que estava comigo, uma das minhas preferidas, com conhecimento e humildade pergunta à inteligência: E se o levássemos à família? A família não pode entrar na área covid. E com o fato? Não pode, temos poucos fatos. Nem para nós temos. Podemos interná-lo e aí a família visita com mais calma. Só quero dar-lhe um beijinho ouço lá atrás nos confins da alma. Pois, isso agora não se faz, minha senhora. Occipital duro.

Que vão todos dar uma curva daquelas até Paris de França. Eu e mais duas que o sigilo deve guardar pegamos na maca do Ferreiro saímos do covidário de peito cheio, incredulamente para os demais sapiens que assistiam, abrimos alas com o doente pela porta principal da urgência.

A esposa só queria dar um beijinho, foi a única coisa que me disse desde que a conheci, horas antes.

Ouvia nos subúrbios de onde a minha acuidade auditiva conseguia chegar – E se ele for covid? Ela também fica e depois ficam todos. E depois todos e os demais têm que fazer teste. E depois a norma 53, alínea f da DGS – instituição que está inexoravelmente anónima a tudo isto.

Só um beijinho, alguém ordenou. E assim a modesta senhora o deu. E só deu mesmo um.

A filha chorava, o genro atónito, o neto desconfiado.

Os lábios enrugados e de cor pessegueiro da esposa beijaram a testa do jovem Ferreiro, piano e presto. Um silêncio uníssono e infinito entre todos nós.

O olhar do Ferreiro vagou.

Temos de regressar, já há uma colectânea de olhares. Sim, vamos. Depressa.

Depois pode vê-lo no internamento – informou-se e garantiu-se.

Voltámos. Estacionámos a maca. Ligar monitor de novo. Oxímetro. Braçal. Eléctrodos.

Voltámos e olho para o meu doente.

O olhar do Ferreiro vagou. Já sabemos. Mas estava tudo nos conformes. Estava mais sonolento, prostrado – efeito dos opiáceos. Glasgow estava sobreponível. Estava tudo sobreponível.

Olhei de novo para o meu doente, mas não o vi.

Não vi que o olhar dele ficou lá fora.

Lá fora, com aquele beijo que me foi pedido desde as onze da manhã.

O beijo merecido da verdade.

Declarei o óbito às 19h21.

Dois dias volvidos estou em casa a anotar os dias passados e só agora percebi que o Ferreiro não voltou comigo na maca, ficou lá fora com aquele beijo.

E pergunto à inteligência: Quem matou este Ferreiro?

O covi? O covide? As metástases podres que não foram acompanhadas? A recidiva do cancro? Os colegas que não o seguiram ou deixaram se seguir? O pouco apoio dos paliativos na urgência – onde tudo vai lá parar? Os colegas emergencistas que não existem, não obstante seguram os cales e males do país todo? A administração do hospital que não investiu nem uns setenta cêntimos para café neste serviço de urgência desde a Primavera? A dê-gê-êsse que definiu a suspensão de todas as consultas não urgentes? Ou talvez não definiu e todos ficaram a pensar que sim. Sim? O governo de Portugal? Ou agora a República Portuguesa?

A Exma. Sra. Dra. Marta que tema. Estas perguntas vieram para ficar.

 

Catarina Janeiro

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