Devaneios

Cozinho o poema

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I

Cozinho o poema
numa cozinha que me é estranha
em que impera o caos dos pratos sujos
numa banca de bolor.
Cozinho o poema
e os utensílios nada podem contra
a marca da ferrugem
do tempo que não vi passar
porque não era o meu.

A faca que uso não foi laminada
como se a sua função não fosse a de cortar
sendo a pressão que exerço
sobre a carne redobrada
e inútil.
Morosa, a carne parte-se
não porque a faca o ditou, mas
porque a própria assim o quis –
ver-se em dois, organicamente.

(A carne deseja cozinhar-se a si mesma
e pouco tenho a ver com isso)

Salgo, em seguida,
essa crua, sangrenta matéria
com a vogal – forma estabilizadora,
necessária ao equilíbrio breve
que ao poema não pode faltar.
Não falha à poética dieta
ao hábito nutricional
esse sabor tranquilo
que a boca pede de acordo
com as leis simples da natureza.

(Certas bocas nada entendem das leis da natureza.
Exercem apenas gestos mecânicos
saudáveis
sintomáticos de uma ignorância
atroz e sistemática.
Certas bocas perdem a memória
do movimento,
da metamorfose que apenas
os alimentos não comestíveis
impressionam no corpo)

Só para as contrariar existe a mão
carregada de pimenta sibilante
– violência na quantidade certa –
que ao sistema,
(quer dizer o corpo)
o silêncio obrigará a sufocar,
zumbindo.

(É da natureza da mão conhecer a natureza
violenta
da natureza)

Corto o queijo
que em breve repousará
sobre a carne
mozzarella rítmica derretida
nesse forno que é o papel
e conserva-se o sangue da carne
com uma ou outra gota
de vinagre
negra tinta que cobre o
bolor inicial do prato

corta-se a mão
célere
ao descascar a batata
queima-se a pele
com o azeite que jorra
ao fazer-se o arroz

quando pronta,
serve a carne ao ponto
pra mal passada,
o poeta que odeia cozinhar
o cozinheiro mutilado por ser poeta

II

A fome obriga o gesto
o corpo obedece-lhe rigorosamente:
traga a vogal, depois a pimenta sibilante
repete o vinagre e a mozzarella
às vezes mescla-se tudo
num sorvo só

mas engasga-se a boca ao trincar
a carne-ouriço
manda-se chamar o chefe
para lhe perguntar porque é aquilo
tão intragável,
o porquê de tanta pimenta
e vinagre
a combinação absurda entre
um equilíbrio frágil e o ardor
insuportável numa boca incendiada

chega o chefe-poeta
indaga o comedor atónito
mas o cozinheiro não pode
(como qualquer artífice)
explicar por completo o seu engenho
e para mau entendedor meia palavra basta
que maldita carne é esta
e sucintamente responde
sem explicar tudo,
o cozinheiro:
é carne de poeta.

E quer saia, a matéria, pela boca
em sinal de desprezo
quer saia satisfatoriamente pelo ânus,
aquele que comeu já não para
os nutrientes que lhe vão para o sangue
o poeta nada pode contra
a transformação sofrida no seu texto
bolo alimentar em última instância
organizado caoticamente em vómito e merda
o cozinheiro nada pode para travar
a autorregeneração apocalítica
que todo o cozinhado lhe causou.

Quem cozinha pouco entende
e quem não cozinha
não entende nada de nada

 

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