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Crónica

Um vulto chamado Clarice

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Gostaria de ter conhecido Clarice mais cedo. Gostaria de a ter abraçado numa outra altura da minha vida, noutras circunstâncias, sem que as academias se metessem entre nós. Somente eu e ela. Eu e seus textos de escritor em vulto. Em vulto e de vulto. Clarice é toda ela linguagem das formas impalpáveis e distantes, quase invisíveis de ser.

Sempre – ou quase sempre – que leio procuro algo nesse livro. Algo não necessariamente meu, mas certa coisa com a qual nunca me deparei. Normalmente gosta-se de um livro pela narrativa, pelo género, por causa daquela personagem que cremos habitar também em nós.

Não procurava absolutamente nada ao ler Clarice. Era-me um universo completamente desconhecido e a descobrir. E precisamente por isso, Clarice surpreende. A sua descoberta não tem término.

Encontrei nela uma forma já de si estranha; paradoxos, oxímoros, a evocação do feminino na palavra ‘escritor’ que julgamos inexistente. Identifiquei-me logo. Sempre julguei inadequado dizer-se poetisa ao invés de poeta. Já que poeta termina em ‘a’ então porque não aproveitar o falso feminino, falso masculino, e usar como uma abrangência de géneros que a humanidade e a poesia partilham? Clarice trouxe – já muito antes de eu sequer ter nascido seja enquanto ser, enquanto mulher, falante da língua portuguesa ou poeta – a mesma questão modulada na palavra ‘escritor’. O mesmo caso, diferente vocábulo, a mesma solução.

Ler Clarice não é só ler um parágrafo, não é ler apenas uma linha, um livro. É ler tudo de um sorvo só e querer tornar a ela sempre que possível – ainda que com as devidas distâncias para que o encanto de a lermos como se fosse a primeira vez não se perca com a repetição e o tempo.

Celebra-se este ano o centenário do seu nascimento. Cem anos de Clarice determinam a sua vida literária, a vivacidade da sua linguagem lida. Pois que um escritor que há perecido só o é na medida em que partilha, ou melhor dito, na medida em que é percebido enquanto partilha; comunicador, não tanto enquanto transmissor de valores, mas enquanto ser que enaltece o que em nós estava latente.

Por norma, esqueço-me facilmente dos enredos, dos nomes dos personagens, dos motivos e frases. Costumo, no entanto, lembrar-me bem melhor do que senti na pele, no peito, nas mãos ou no restante corpo, o que li em tempos. Determinada passagem, ao ser relida, evoca esse outro momento passado tanto pela memória como pela repetição da experiência. A isso gostaria de chamar presença. Presença pelo encontro da minha pele com o texto de Clarice. Como se ele se atrevesse (e atreve) a passear-se a dançar pelos meus sentidos.

Pouco esperava de Clarice – pelo menos que não fosse académico. Mas hoje deixo-lhe a minha homenagem – tanto enquanto investigadora quanto como admiradora. Enquanto leitora retornarei à sua literatura como quem revisita um local de guerra onde foram gravadas duras batalhas. As mesmas de ontem, de hoje e de amanhã. Porque Clarice é universal e única, único vulto da literatura de expressão portuguesa que de tão impressível chega a dar prazer pelo terror de ser mistério.

 

CMS

10/12/20

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