Artigo de Opinião

Está muito na moda isso do racismo

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No dia 8 de dezembro, numa partida da Liga dos Campeões entre o Paris Saint-Germain e o Istanbul Başakşehir, mais um episódio de racismo veio à tona, desta vez com a ofensa partindo de um árbitro auxiliar contra o ex-futebolista camaronês Pierre Webó, atualmente membro da comissão técnica do clube turco. Mesmo para quem despreza de todo o futebol, há uma poderosa dimensão sociológica inerente a uma atividade tão influente a nível mundial. Ainda que o futebol moderno, altamente financeirizado e elitizado nos seus contextos mais proeminentes, com corpos mecanizados de alto rendimento, super-humanos deificados, enclausurados em bolhas sociais alheias à realidade, ele nunca deixou de refletir as sociedades em que está inserido. O episódio repercutiu pelo mundo e, como sempre, visibilidade e espaço para abordar o assunto foram distribuídos sem qualquer rigor. Em vez de veicular o que têm a dizer as vítimas e os estudiosos reconhecidos do racismo e do colonialismo, os meios de comunicação e certo apetite social (em negar os factos e atacar as vítimas) deram vazão aos achistas de plantão, todos eles brancos, comprometidos senão com a própria ignorância.

Um deles, talvez o que mais tenha repercutido em Portugal e no Brasil, foi o treinador Jorge Jesus, que, do alto da sua exuberante sapiência, disse:

«Eu não sei. Não tava lá. Não sei o que é que aconteceu, não sei o que é que se falou, o que é que se diz. Mas hoje tá… tá muito na moda isso, né? Tá muito na moda isso do… do racismo. Como cidadão, tenho o direito de pensar à minha maneira… e só posso ter… só posso ter uma opinião concreta se souber o que é que se disse naquele momento. Depois, qualquer coisa que se possa dizer… contra um negro… é sempre sinal de racismo. Se pode dizer a mesma coisa contra um branco, já não é sinal de racismo. Está-se a implantar essa… essa onda… essa onda na… no mundo, e se calhar até houve, como é óbvio, algum sinal de racismo face às declarações que tiveram com esse treinador, mas eu não sei o que é que disseram».

O texto em itálico é uma transcrição literal de um naco de brilhantismo sociológico do treinador. Percebe-se que ele não sabia o que ocorrera, mas parece saber muito bem que isso do racismo está na moda. E também sabe que o racismo reverso existe e oprime os brancos. Face à enorme preocupação demonstrada por Jorge Jesus em compreender aquilo de que fala, resolvi ajudá-lo reforçando a sua tese de que isso do racismo está na moda. Caro Jorge Jesus, isso do racismo não só está na moda hoje – como você bem disse –, como sempre esteve ao longo do último punhado de séculos. Ora, veja bem:

O primeiro desembarque de um comércio que mudou a história de Portugal ocorreu no dia 8 de Agosto de 1444, quando 235 pessoas capturadas na costa africana atracaram como mercadorias em Lagos, no Algarve. O Infante Dom Henrique de Avis, financiador da expedição, fazendo-se valer do quinto real, tornou-se de imediato proprietário dos 46 africanos mais fortes.

Ao longo de 350 anos, os portugueses realizaram mais de 11,4 mil viagens marítimas «negreiras» (leia-se: transporte de seres humanos escravizados). Destas, 9,2 mil foram para o Brasil. O início do comércio de escravos no Atlântico foi uma invenção portuguesa, e durante algumas décadas os portugueses foram os únicos na empreitada.

Foram levados ao Brasil quase 5 milhões de escravos africanos, um recorde absoluto no mundo. Comparativamente, aos EUA foram levados «apenas» 389 mil. Até 1650, dois de cada três navios que comercializavam escravos no mundo eram portugueses.

«O comércio era altamente lucrativo. Traficantes portugueses fizeram fortunas e, em alguns casos, até ganharam títulos de nobreza em Portugal.»

Embora se atribua à pressão inglesa o fim oficial do regime escravocrata no Brasil e se exalte como heroína a figura da Princesa Isabel (desprezando a luta dos escravizados pela sua liberdade), a abolição ocorreu em um período em que a manutenção do regime laboral de escravidão já não era tão lucrativa para os proprietários, os senhores de engenho, especialmente com o advento da imigração europeia.

«O ex-escravo é jogado dentro de uma ordem social competitiva, como diz Florestan (Fernandes), que ele não conhecia e para a qual ele não havia sido preparado. Para os grandes senhores de terra, a libertação foi uma dádiva: não apenas se viram livres de qualquer obrigação com os ex-escravos que antes exploravam, mas puderam ‘escolher’ entre a absorção dos ex-escravos, o uso da mão de obra estrangeira que chegava de modo abundante ao país – cuja importação os senhores haviam conseguido transformar em ‘política de Estado’ – e a utilização dos nacionais não escravos. Estes últimos haviam evitado os trabalhos manuais como símbolo de degradação quando monopolizados pelos escravos.» (Souza, 2017)

A produtividade dos novos trabalhadores em regime não escravocrata era 1/3 maior que a dos antigos escravos, e os custos desse tipo de mão-de-obra eram menores.

«Livres», os negros não tinham quaisquer condições de competir no novo regime laboral. A fundação da sociedade classista brasileira é a escravidão, bem como o abandono dos negros deixados à sua sorte após o fim do regime escravocrata, despossuídos, desamparados, despreparados e marginalizados, relegados à indigência.

Também foram os portugueses (e demais europeus colonialistas) que inventaram a ideologia racista, e por isso mesmo NÃO EXISTE RACISMO REVERSO. Como disse o historiador Eric Willians, a escravidão não nasceu do racismo, mas o racismo foi a consequência da escravidão.

Essa ideologia racista é uma das grandes diferenças entre a escravidão transatlântica e todas as outras formas de escravidão anteriores, como demonstra Laurentino Gomes em Escravidão – Vol. 1 – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. A outra grande diferença foi a sua dimensão, a sua escala industrial. Da Maldição de Caim, usada por jesuítas para defender a escravidão, a devaneios de Voltaire, Kant e Hegel, a ideologia racista é uma invenção europeia contra outros povos, nomeadamente os africanos, e foi utilizada para justificar o colonialismo que escravizou, assassinou e saqueou povos e forjou a atual ordem internacional.

Infelizmente, tenho de resgatar esses factos não muito convenientes porque num país que tanto valoriza a sua história há um curioso costume de desassociá-la da realidade atual, como se esta tivesse brotado de pura magia ou de bênção divina. É evidente que a valorização da história depende da fantasia colorida que a reveste. Quando abordamos o seu lado, digamos, factual, surgem logo as vozes que rejeitam assumir a culpa por algo que não fizeram – isso na melhor das hipóteses, quando não negam simplesmente os próprios factos. Só querem os louros e as graças, a herança ufanista. Lamento, mas têm de aceitar o pacote completo: se glorificam um passado colonialista e reivindicam pertencimento a ele, UM PASSADO QUE INVENTOU O RACISMO E QUE ESTÁ NA ORIGEM DA ATUAL ORDEM SOCIAL E ECONÓMICA de Portugal, do Brasil e do continente africano, têm de arcar com a culpa. Se não o glorificam e nem o reivindicam, têm de conhecê-lo na sua versão realista e fazer o esforço de compreender como esse passado determina o presente.

Eu não quero estigmatizar o treinador Jorge Jesus. Na verdade, ele personifica um pensamento coletivo dominante em Portugal – até os seus desafetos o aplaudem neste momento. Por isso, perdoem-me, mas é o preço que têm a pagar os povos herdeiros dos projetos colonialistas: o esforço de identificar, entender e combater o racismo a partir do âmbito mais pessoal, que é o que reproduz o racismo estrutural.

Cá entre nós, comparado com o que pagaram e continuam pagando os povos colonizados e racializados, é uma pechincha.

 

 

Referências:

Navios portugueses e brasileiros fizeram mais de 9 mil viagens com africanos escravizados (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45092235)

A integração do negro na sociedade de classes (Forestan Fernandes, 1964)

A elite do atraso – da escravidão à Lava Jato (Jessé de Souza, 2017)

Escravidão – Vol. 1 – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares (Laurentino Gomes, 2019)

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