Connect with us

Artigo de Opinião

O ano da morte de Ihor Homeniuk

Published

on

A morte de Ihor Homeniuk colocou em evidência o colapso de um ministério arruinado por sucessivos casos de negligência, corrupção, nepotismo e incompetência. A inoperância dos órgãos de fiscalização, o extremar ideológico nas forças de segurança e, finalmente, o desprezo sistemático pelos mais elementares direitos humanos leva a que atualmente o país se veja obrigado a repensar o futuro da sua polícia.

Inicialmente, ninguém prestou particular atenção à morte de Ihor Homeniuk às mãos de três agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em pleno aeroporto da Portela. O caso foi rapidamente abandonado pelos media, que focaram as suas atenções nos números da pandemia, para agora ressurgir como um caso isolado de violência policial. Especialistas indicaram que não se deve julgar a floresta pelas árvores, mas é difícil quando tudo aponta para que o SEF se assemelhe à famosa floresta de Birnam, imortalizada por Shakespeare em Macbeth.

Eduardo Cabrita, aquando da audição da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, aludiu para o facto de, nos últimos 10 anos, se incluirmos Ihor, apenas terem sido contabilizadas três mortes no seio do SEF, sendo que as outras duas se deveram a efeitos colaterais do transporte de droga no organismo. Surgem, agora, acusações que relatam o uso recorrente da coação física e verbal na abordagem a casos de tráfico de droga. E restará saber, se é que alguma vez se saberá, até que ponto é que esta coação física não terá, direta ou indiretamente, influenciado o desfecho desses dois casos.

Não podemos ignorar que, no passado, o SEF, assim como órgãos análogos, incumbidos de fiscalizar o espaço aéreo português e os seus aeroportos, são reincidentes, por negligência ou omissão, em atos que resultaram na violação sistemática dos mais elementares direitos do ser humano. Não poderíamos estar a falar de outra coisa que não o programa de extradições forçadas (Extraordinary Rendition), operado, durante, pelo menos uma década em território nacional, pela CIA, com a conivência do Governo Português. Falamos de um programa completamente à margem da Lei, criado durante o mandato de Bill Clinton e posteriormente ampliado por Bush, que teve um papel nuclear na guerra americana contra o terrorismo. Este programa tinha como modus operandi a detenção ilegal de um vasto número de indivíduos, muitos deles cidadãos europeus, com base em indícios questionáveis da ligação destes a redes cuja finalidade seria o terrorismo internacional. Estes alvos viam a sua personalidade jurídica ser alienada, eram sequestrados por agentes da CIA ou a mando desta, colocados em aviões de companhias de fachada criadas exclusivamente para o propósito, e transportados, por esta via, para prisões secretas (black sites) operadas pela CIA, ou sob alçada desta, em países como Marrocos, Egipto ou Polónia. Nestas prisões, os métodos de interrogatório culminavam frequentemente em tortura, violação e encarceramento em condições degradantes e desumanas. Estes prisioneiros raras vezes sabiam o teor da sua acusação. Não tinham direito a qualquer tipo de representação legal porque a sua identidade era apagada (ghost prisoners) e todo o processo era conduzido de forma extrajudicial. Posteriormente, eram transferidos para a prisão americana de Guantánamo, em Cuba, onde eram novamente torturados e mantidos indefinidamente. Alguns destes prisioneiros permanecem, ainda hoje, nesta prisão.

Portugal teve um papel fundamental no programa de sequestro ilegal, transporte por via aérea e posterior tortura destes prisioneiros. As autoridades portuguesas escusaram-se de fiscalizar um vasto número de voos suspeitos operados pela CIA, mesmo após investigações jornalísticas terem desvelado os primeiros indícios das práticas anteriormente descritas. O Estado Português, nomeadamente através da Procuradoria Geral da República, tudo fez para obstar à investigação espoletada pelas denúncias e evidências recolhidas pela, à data, eurodeputada Ana Gomes. Luís Amado, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de José Sócrates, negou veemente a existência de tais voos, para mais tarde o admitir. A idoneidade da eurodeputada Ana Gomes, assim como da Comissão Temporária, nomeada para apurar a utilização do espaço europeu para o transporte e detenção ilegal de prisioneiros (Temporary Committee on the alleged use of European countries by the CIA for the transport and illegal detention of prisoners) foi reiteradamente colocada em causa. No depoimento prestado por dois jornalistas do Expresso a esta Comissão, Micael Pereira e Ricardo Lourenço, é possível ler que uma das possíveis causas para a ausência de fiscalização ou registo dos tripulantes e passageiros das aeronaves se deveu à negligência do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Certo é que o programa de extradições extraordinárias da CIA usou, com a conivência das autoridades portuguesas, os aeroportos do Porto, Lisboa, Santa Maria e Base Aérea das Lajes para fins ilícitos e que obliteraram as obrigações firmadas por Portugal internacionalmente. Muitos destes voos eram classificados como “voos de Estado” e, por isso, ser-lhes-ia dada prioridade no acesso a slots para aterragem, situação que evidencia o conhecimento de tais voos por parte das autoridades portuguesas. Foram recolhidos indícios que apontam para a estadia de agentes da CIA, com mandados de captura pendentes em Itália e Alemanha, num hotel do Porto.

A Statewatch, organização sem fins lucrativos criada em 1991 para garantir uma vigilância activa das liberdades civis na Europa, cita a Comissão de Veneza (2006) para reafirmar o dever de fiscalização de “voos de Estado” que se apresentem como civis sempre que haja a suspeita da utilização destes para a violação de direitos humanos. Reforça ainda que os estados-membro do Conselho da Europa não têm a obrigação de permitir que o combate ao terrorismo se realize a todo o custo, em particular quando isto significa a não observação das suas obrigações internacionais naquilo que à defesa dos direitos humanos diz respeito.

Em 2008, a Reprieve, organização sem fins lucrativos que se tem embrenhado na luta pelos direitos dos prisioneiros detidos indefinidamente e sem direito a julgamento em Guantánamo, publicou um relatório (The Journey Of Death – Over 700 Prisoners Illegally Rendered To Guantanamo Bay With The Help Of Portugal) que, através do cruzamento de dados fornecidos pelas autoridades americanas e portuguesas, dados públicos sobre o trajeto dos voos das companhias de fachada e o testemunho de prisioneiros, conseguiu apurar o envolvimento direto ou indireto do Estado Português no repatriamento de pelo menos 728 prisioneiros ilegalmente transferidos para Guantánamo.

Por mais inacreditável que pareça, estes 728 prisioneiros, distribuídos por pelo menos 28 voos, foram invisíveis para as autoridades portuguesas e, nomeadamente, para o SEF, que, por omissão, deixou de cumprir as suas obrigações fundamentais. Resta saber quanto deste Serviço de Estrangeiros e Fronteiras é ainda o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que sentenciou Ihor Homeniuk à morte. Por quantos processos de purificação precisaremos de passar para que sejamos finalmente congratulados com um SEF que não nos envergonhe? Quem guarda os guardas? Aparentemente, ninguém.

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *