Artigo de Opinião

Vacinação na era da infodemia

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Lembro-me das campanhas de vacinação em massa durante a minha infância no Brasil, entre meados dos anos 80 e começo dos 90. O bairro se mobilizava, formava-se um certo rebuliço para saber quem já havia sido vacinado, se era gota ou agulha. Os primeiros regressados do posto de saúde desfilavam uma mescla de alívio e vaidade. As vacinas administradas em gotas na boca eram até desejadas por todos, talvez graças ao personagem Zé Gotinha, criado em 1986 pelo artista plástico Darlan Rosa a pedido do Ministério da Saúde para facilitar a adesão das crianças. Mas o terror se impunha a mim e a muitos quando, no avançar da fila, percebíamos que afinal daquela vez era injeção, e que fôramos enganados. Foram tantos dramas: o choro que fazia coro com outros ao redor, seguido de um suspiro de alívio e uma recompensa doce no final. De regresso a casa, nada como ostentar a marca de guerra no braço, sinal de bravura de quem havia sobrevivido à investida da agulha. E de responsabilidade! Comparávamo-las numa disputa estética. Algumas assemelhavam-se a mapas; outras, a emblemas de clubes de futebol.

É pena que naquela altura ninguém me tenha divertido contando a piada de que um dia adultos teriam mais medo de uma vacina do que eu. Era uma época em que não se questionava minimamente a sua eficácia. As vacinas eram vistas como algo benéfico e, apesar da agulha medonha, ninguém queria ser realmente excluído. Também não havia Internet para facilitar a propagação do vírus desinformativo, e as teorias conspiratórias não se popularizavam tão facilmente – havia, sim, inúmeros mitos mirabolantes, mas nenhum era sobre vacinas. Várias doenças graves foram erradicadas e esse era o facto social que bastava, sobretudo para mães e pais. Ironicamente, os próprios movimentos antivacina atuais são compostos por pessoas que durante a infância foram obrigadas a dar o braço à picada, tendo crescido saudáveis e protegidas de doenças outrora devastadoras, desfrutando de saúde para hoje empreenderem esforços em seus arroubos conspiracionistas. Arroubos que não podem ser explicados sem uma contextualização que considere a «infodemia» das redes sociais e a falência da democracia liberal burguesa, que induz pessoas descontentes a aceitar sem critério qualquer alternativa. O charlatanismo, político ou místico, capitaliza muito bem essa crise.

Hoje, o país onde vivo, Portugal, começou a sua campanha de vacinação contra a Covid-19. É com melancolia que me deparo de muito perto com a influência (maior do que eu imaginava) dos antivacina, cujas mentiras martelam no imaginário popular no mínimo em forma de receio, de desconfiança, quando não são mesmo encorpadas e condicionam a campanha. Inúmeras pessoas próximas a mim não querem ser vacinadas e referem-se à vacina como se ela fosse um disparate, um enorme absurdo. A rapidez com que imunizantes contra a Covid-19 foram produzidos deu um maior vigor a conspiracionismos que não encontram eco apenas nessa dita nova extrema-direita delirante. O sentimento anticiência e antivacina permeia por todos os lados, interage connosco e bate-nos à porta. Os que não se enveredam em criativas fantasias nem denunciam planos diabólicos possuem uma pré-disposição geralmente associada a uma «militância» particular. Para uns é a falta de escrúpulos da indústria farmacêutica, para outros são os testes em animais. Há também os que rejeitam qualquer obrigatoriedade em nome da liberdade individual. Causas geralmente justas manejadas para fazer valer a ignorância e o egoísmo, dois celebradíssimos monumentos vestidos com trapos de rebeldia na pós-modernidade. E sempre em nome de um «pensamento independente», de uma «verdade sufocada» só ao alcance dos que pensam «fora da caixinha». Como li noutro dia – não me lembro onde –, o conhecimento liberta, mas verifique a fonte antes de se libertar.

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