Artigo de Opinião
Qual o limite da (des)humanidade?
O ano de 2020 não será lembrado por ter sido um ano fácil, mas sim pelo sofrimento e sacrifício, e a data de 17 de dezembro vai contribuir para esse facto. Nesta quinta-feira, 16 caçadores abateram um total de 540 animais, entre eles veados e javalis, numa montaria organizada por uma empresa espanhola na Quinta de Torre Bela.
O episódio foi exposto ao público através das redes sociais, onde os protagonistas exibiam fotos dos animais mortos com descrições a celebrar, de maneira vangloriosa, o recorde alcançado nesse evento.
É impossível ficar indiferente perante um ato de crueldade deste tamanho, e a prova disso foi a quase imediata onda de revolta e indignação que se gerou pelo povo, instituições, políticos, e até mesmo outros caçadores. A quantidade de questões que tenho acerca deste espetáculo grotesco é enorme e, mesmo obtendo as respostas, não tenho a certeza que faça qualquer tipo de diferença.
Em primeiro lugar, o que me causa mais confusão é a quantidade absurda de animais abatidos. A justificação que encontrei nas notícias que li apontavam para a possibilidade de a caçada ter sido organizada com o objetivo de corrigir a densidade populacional da zona. Se foi esse o motivo, suponho que foi necessário pedir selos para identificar os animais abatidos. Será que o pedido de cerca de 600 selos não teria levantado suspeitas por parte da instituição responsável pelo fornecimento dos selos? Essa quantidade é um número aceitável, mesmo para uma montaria?
Em segundo lugar, o mais inquietante é que o local onde a montaria foi organizada está destinada à construção de uma central fotovoltaica, o que me leva a questionar o verdadeiro motivo deste evento. De qualquer modo, de certeza que haveria melhor forma de libertar o local sem ter de sacrificar animais e vegetação.
Independentemente do debate ético sobre esta atividade, todos concordamos que o número de animais mortos nesta caçada é ridiculamente elevado e, de acordo com os relatos registrados pelos meios de comunicação, a quantidade de tiros disparados, com curto espaço de tempo entre eles, e a quase inaudibilidade de sons provindos dos animais inclinam a balança no sentido de um abate indiscriminado e não de uma montaria.
Face ao acontecimento, o ICNF recorreu a medidas drásticas, suspendendo, com efeito imediato, a licença da Zona de Caça de Torre Bela, e a Herdade apresentou uma participação de crime contra a preservação da fauna ao Ministério Público, argumentando que houve incumprimento do contrato estipulado entre a organizadora da montaria e os caçadores em relação ao número máximo de animais permitidos a abater.
A verdade é que, apesar de apoiar veementemente as medidas tomadas pelo ICNF, acredito que estas não são suficientes face à gravidade do problema. Depois deste acontecimento, o Ministro do Ambiente admitiu a necessidade de rever e aprimorar a Lei da Caça e, a meu ver, é uma medida urgente. A quantidade de lacunas e erros encontrados nesta legislação justifica-o. Por exemplo, como se explica que apresenta a definição de um limite quantitativo de animais caçados, mas falha em especificar um limite de animais abatidos por caçador numa montaria? Por que é permitido caçar animais em perigo de extinção? Estes problemas merecem uma atenção urgente e a criação de penalizações suficientemente pesadas para dissuadir a perpetuação deste crime.
De facto, 2020 não foi um ano simpático para qualquer ser vivo. Relembro o incêndio em Santo Tirso que vitimou cerca de 70 animais, fazendo deste o segundo caso de maus-tratos a animais este ano. Só posso esperar que este tipo de casos não se desenvolva numa tendência.
Infelizmente, muitas pessoas mascaram a sua covardia ao matar animais pelo puro prazer sádico e sensação de poder que podem obter dessa experiência. Porém, – e felizmente – por cada uma dessas pessoas, há sempre alguém que faz questão de criticar tamanha injustiça e crueldade, e para defender aqueles que o não podem fazer.