Artigo de Opinião
O futuro dos livros
Ainda me lembro da primeira vez que o senti. O cheiro das aguarelas de Antoine de Saint-Exupéry nas páginas claras e suaves da sua obra mais famosa que me tinha acabado de chegar às mãos. Foi aos 6 anos que li pela primeira vez O Principezinho. Nada me dava mais prazer naqueles dias de verão do que chegar da praia e sentar-me na cozinha com o livro entre os braços, enquanto folheava lentamente à medida que acompanhava a viagem do pequeno Príncipe pelos lugares mais recônditos do Universo. Quando surgia alguma palavra mais estranha aos olhos de um rapaz de 6 anos, levantava-me, pegava no livro e ia a correr ter com a minha mãe à espera de uma explicação. Foi nesse dia que compreendi o significado da palavra “cativar”. Não foi o primeiro livro que li. Desde muito cedo, enciclopédias de dinossauros, civilizações antigas e planetas fantásticos enchiam as paredes do meu quarto e as noites eram preenchidas com leituras à luz do candeeiro, quando chovia, ou sob as constelações de verão, quando o tempo assim o permitia.
Contudo, com o passar do tempo, objetos estranhos foram aparecendo nos domínios do digital e uns certos e-books pareciam algo que eu não queria incluir nos meus planos. No entanto, tudo ficou ainda mai s bizarro quando uma “edição digital” de O Principezinho apareceu.
Poder levar o livro à minha mãe e mostrar-lhe a página onde se encontrava a palavra estranha era das melhores partes do dia. Passar as mãos pela capa antes do início da viagem e sentir o cheiro do papel era algo que me dava uma sensação de poder. Tinha ali comigo a história de alguém, de um herói, de um vilão, de um Príncipe. Fosse de quem fosse, estava ali, entre a capa e a contracapa, seguro nas minhas mãos e podia abri-lo e fechá-lo quando bem me apetecesse. Para ter a certeza de que não me perdia depois de um intervalo, fazia uma pequena dobra no cimo da página onde tinha interrompido a história e esperava ansiosamente para voltar. Ora, isto não seria possível num tablet ou noutra geringonça qualquer que encontramos nas mãos de todas as crianças de hoje e, ainda que haja uma forte aderência aos livros digitais, nem todos estamos preparados para abandonar as nossas dobras.
Embora já existisse muito antes disso, o livro começou o seu caminho para a produção em grande escala em 1455, com Gutenberg e a sua prensa móvel. Nos anos que se seguiram, cada vez mais membros da Escolástica tinham acesso a livros impressos e, ainda que não passassem de meia dúzia de exemplares da Bíblia, das obras de Copérnico e de outras provenientes da Cúria Romana, Gutenberg marcou a história e um livro manuscrito com todo o cuidado por um monge, que demoraria anos a ser finalizado nas suas bibliotecas monumentais, podia agora ser feito em poucas semanas. O manuscrito, recheado de iluminuras tão belas quanto a Vénus de Milo, era, sem dúvida, mais valioso do que um livro impresso, mas, ainda assim, cada um destes novos objetos tinha o seu encanto. Eram outros tempos e, naquela época, o acesso a um livro não era um privilégio alcançado por qualquer um, até porque grande parte da população não se aventurava pelos três anos no trivium e quadrivium e, portanto, era analfabeta. Ainda assim, havia um grande respeito por aqueles que sabiam apreciar uma boa obra.
Os tempos mudaram e, hoje em dia, todos nós temos acesso a toda a Literatura que possamos desejar. Desde Camões a Hemingway, qualquer obra pode ser encontrada na livraria do centro comercial mais próximo e, caso isso não aconteça, as encomendas online tratam do assunto. Na verdade, seria de esperar que o desenvolvimento da internet abalasse o negócio dos livros físicos, o que não aconteceu. Nos dias correntes, a compra e venda de livros online constitui o segundo maior negócio de toda a rede digital, ainda que esses mesmos livros estejam disponíveis em formato digital. Parece que as pessoas não querem abdicar da sensação inconfundível de receber, cheirar e apreciar um livro acabado de comprar. Tal como ninguém prefere ver obras como El Guernica ou a Noite Estrelada através de uma plataforma digital de um museu, também ninguém quer abrir mão de uma boa leitura, de um bom marcador oferecido no aniversário ou de uma capa reluzente com uma dedicatória de um ente querido.
Os livros são objetos, mais ou menos pessoais e assim irão permanecer. Desfrutar um livro no momento e revivê-lo anos mais tarde tem feito parte da vida das pessoas. Os livros digitais podem ser úteis em algumas situações, mas nunca conseguirão substituir a sensação de pertença que um verdadeiro livro nos dá. É um objeto nosso, guardado no nosso quarto, que levamos sempre connosco, seja na mochila, seja na memória. Tal como Alexandre o Grande, também eu tenho a minha Odisseia à cabeceira. Os livros marcam-nos, não apenas pelas histórias que no contam, mas também fisicamente. Lembrar-me que O Nome da Rosa da minha mãe tinha uma mancha na página da descrição do Anticristo por Guilherme de Baskerville faz-me lembrar ainda mais vividamente essa mesma descrição. Estes pormenores não vêm nos livros digitais. Aqui tudo é perfeito. No entanto, são as pequenas imperfeições que dão encanto às coisas e o mesmo se aplica às pequenas dobras, arranhões ou ao desgaste dos livros que muitas vezes são passados de geração em geração.
Parece então que o digital ainda tem um longo caminho a percorrer caso queira aproximar-se do legado que nos tem sido deixado pelos livros em papel. Desde a Bíblia aos manuscritos de Alexandria, as obras físicas sempre desempenharam um papel preponderante na nossa História. Em tempos em que folhas valiam tanto quanto a prata, um livro era visto como sinal de sabedoria. Hoje em dia não é bem assim, pelo menos grande parte das vezes. Os livros tornaram-se em algo mais pessoal, que faz parte de nós, podendo servir de refúgio àqueles que o procuram.
Receber livros pelo Natal é algo que lembro com muito carinho e as histórias que me contaram levo-as no meu coração. São os pequenos pormenores, aliados às narrativas, que nos fazem relembrar tudo o que já lemos de forma ainda mais vívida. Uma mãe a ler uma história ao seu filho na cama, sob a luz brilhante de um candeeiro, pode mudar a vida dessa criança. Eu tive esse privilégio.
Os livros fazem parte a nossa vida, ou pelo menos deveriam e nada é ou alguma vez foi tão poderoso quanto uma boa história.
aos livros