Crónica

Tirem o Macaco da Prisão

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Do cancioneiro de Manel Cruz faria uma religião. Pelo menos uma filosofia. Já as fizeram por menos e por provas menos concretas de autenticidade profética do individuo, pelo que a História não teria outra alternativa que não fosse decidir a favor da minha causa. No entanto, julgo que tornar a sua música um agente rígido seria uma violação do princípio sagrado à luz do qual vai sendo concebida.

Do Manel chegam-me sempre as letras. Mesmo que se demorem, perdidas nos seus afazeres em auscultadores alheios. A mensagem, diferente para todos os ouvintes, revela-se quando considera propício o alinhamento cósmico. E recusa ser domada. Será difícil explicar que aquele indivíduo que insiste em tirar a camisola em palco é o mais próximo que alguma vez terei de uma voz para a minha consciência. Que, entre flores liláceas e bandidos em fuga, se mantém fiel à tarefa hercúlea de manter a sanidade de um jovem com menos vinte e cinco anos de experiência nesta vida.

Este mundo não foi feito para ser entendido, mas nem mesmo assim deixamos de o tentar. E, todos os dias, levantamo-nos com o desejo febril que as calotes polares não se estejam a sacrificar em vão, paz à sua alma. Que o seu desaparecimento, por uma cadeia elaborada de efeitos, nos coloque um passo mais perto do que queríamos para nós. “Queria, já não quer?”, graceja pela enésima vez a voz na nossa cabeça que está condenada à subserviência. Mas terá, ainda que mergulhada no desespero da sua condição, a sua razão. Como é possível querer algo do qual já não nos lembramos? Trocamos sonhos por pedaços de nada. Pelas nossas guerras. Pelas nossas lutas privadas.

Poderá o leitor argumentar que o dia não convida ao estudo das infelizes dores de crescimento de um jovem adulto. Mas eu discordo. Cantava o meu profeta que todos os ventos são a favor. Mas só quando nos empurrarem é que saberemos a favor do quê. Em alto-mar de pouco nos servirão os remos para contrariar o vento que nos guia. Vamos mudar o quê? A mudança já está em curso. Mas nem sempre temos de nos conformar. Queixemo-nos. O conformismo é um desperdício de neurónios. Como ato de rebeldia. Como libertação. Mesmo que o nosso impacto seja insignificante. Porque este mal é a nossa cura. E não temos outra escolha.

Admito ter viciado os resultados desta experiência mental. Se rejeitarem a minha tese, se verbalizarem o vosso desagrado perante a minha conclusão, estarão a validá-la. Não resistam ao impulso. Libertem-se da repressão a que se sujeitaram. Manifestem-se. Irritem-se. Nem que seja comigo. Mudem pelo que está certo e não por vos pedirem. Tirem o macaco da prisão.

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