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Crónica

Cancelar o outro absolve-te da tua culpa?

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Já faz uns anos que a cultura do cancelamento entrou em cena para desmascarar marcas e figuras públicas com o fim de obter justiça social. Erros que antes eram ignorados, como atitudes misóginas, racistas e xenofóbicas, agora são repudiados. A cultura do cancelamento impossibilita a normalização desses atos e faz com que figuras públicas pensem duas vezes antes de utilizar o seu poder para oprimir alguém. Mas parece que na internet não há freio e tudo que ganha velocidade tende a perder o controlo. O que iniciou como um movimento para expor injustiças, uma ferramenta de vigia aos privilegiados, tornou-se uma expectativa incontida pelo próximo vacilo. Uma ansiedade, uma felicidade, uma espera por quem será o próximo cancelado.

A era do cancelamento digital desenfreado minimizou os seus critérios para o cancelamento a que tudo e todos estão sujeitos, desde que alguém aponte o erro que até então ninguém havia percebido. A cultura de cancelamento autoriza exclusões instantâneas quando o alvo, que antes era visto como uma figura divina, simplesmente se apresenta como um ser humano. Cancelamos qualquer indivíduo atuante de erros, portador de maus sentimentos, propício para os pecados capitais. Qualquer pessoa que não beire à perfeição. Ou seja, alguém como tu, como eu, como todos nós. Nesse tribunal cibernético, se não formos os culpados, somos os grandiosos juízes de valores. Mas será que não apontamos e julgamos o outro a fim de absolver a nossa própria culpa?

Segundo a teoria do bode expiatório de René Girard, desde os povos primitivos, há uma cultura de culpar um ou mais indivíduos pelas mazelas da sociedade. Transfere-se toda a angústia da comunidade para a punição ou a exclusão de determinadas pessoas, a fim de “renascer” a paz. Tudo isto ocorre repetidamente, afinal, a paz não se instala por muito tempo e assim seguimos a culpar os homossexuais pela destruição da família, as próprias mulheres pelos estupros que sofrem, imigrantes pela crise financeira de um país, e por aí sucessivamente – porque o atalho para disfarçar a culpa é transferi-la para os outros.  A teoria explica os grandes conflitos sociais, mas se a trouxermos para os pequenos convívios também podemos observá-la com clareza: a dificuldade de lidar com as próprias frustrações faz com que apontemos os atos reprováveis de outras pessoas. E assim seguimos, substituindo na nossa fala o “nós” por “eles”, e preocupando-nos com a correção e melhoria “deles”, e não com a nossa.

A psicanálise explica essa conduta como um mecanismo de defesa da psique.  Eu acrescentaria que também é um mecanismo de covardia. O discurso de herói na internet que julga e cancela as pessoas, esquece os seus erros diários que não são filmados e  publicados. Cada fala, cada ato, cada erro, cada pensamento: quem não seria cancelado se tudo isso fosse mostrado? A ideia do cancelamento já não é por melhorias nem por justiça, é pelo gosto humano e amargo de ver o outro cair e de achar que a cada queda do outro, quem derruba é que se eleva.

A consequência da cultura de cancelamento é de que, por um lado, pessoas públicas e os seus respectivos públicos têm a oportunidade de repensar – e temer – falas e atitudes discriminatórias ou até criminosas. Por outro, a cultura do cancelamento fomenta as bolhas de expectativas irreais da qual estamos imersos. Esperamos a perfeição do outro para, talvez inconscientemente, ansiar para apontar os seus erros e, finalmente, camuflar as nossas próprias imperfeições. Queremos do outro aquilo que nunca seremos. E permanecemos estagnados na ilusão de ter algum poder em cancelar, na ilusão de ter algum poder em ser melhor que o outro. E fora a hipocrisia sistemática, o linchamento virtual não permite a retaliação, porque não se pune o ato, e sim o indivíduo. O intuito não é reeducar e reintegrar, mas excluir. Descarta-se o debate, cancela o usuário e reina, cada vez mais, a hostilidade das redes sociais. Perde-se toda a oportunidade de evolução – tanto a do outro, quanto a nossa. Perdem-se todos: Quem é cancelado e quem cancela.