Crítica

Adeus, Lenine e olá, amor incondicional!

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Vamos fechar os olhos, abstrair-nos da realidade à nossa volta e fazer este exercício: imaginar que passámos vários meses em coma e, quando despertamos, a realidade como a conhecíamos já não existe e uma pandemia alterou o quotidiano de toda a população a nível mundial. Esta é uma descrição bastante sucinta da situação de Joseph Flavill, um jovem britânico de 19 anos, que após vários meses em coma na sequência de um atropelamento, segundo o The Guardian, acorda em pleno desconhecimento do significado do termo COVID-19, e longe de adivinhar que uma pandemia veio abalar o mundo no último ano!

Levanta-se a seguinte questão: Quantas voltas poderá o mundo dar em oito meses?

Questão esta que se aplica justamente no contexto do filme “Adeus, Lenine!”, realizado por Wolfgang Becker e galardoado com o prémio de melhor filme do ano pela Academia de Cinema Europeu, em 2003.

Com a Alemanha de Leste como fundo, esta é uma comédia dramática que retrata a época da queda do muro de Berlim e almeja atingir o lado sentimentalista dos nossos corações ao abordar a imensidão do amor de um filho de forma absolutamente singular.

Katrin Sass surpreende-nos com uma performance extraordinária no papel de Christiane, mãe de 2 filhos, ativista e acérrima defensora do comunismo e dos valores da República Democrática Alemã.

Em 1989, ao ver o filho numa manifestação contra o governo e, por conseguinte, contra os ideais que considerava nele enraizados, Christiane sofre um ataque cardíaco e entra em coma. Permanece inconsciente durante todo o alvoroço da transição do comunismo para o capitalismo. No verão de 1990 acorda sem, no entanto, o saber, sob o sol de uma Alemanha reunificada, demonstrando a antítese da célebre frase de George Orwell na obra “1984”: “Quem adormece em democracia, acorda em ditadura”!

Perante a fragilidade da condição clínica de Christiane, os médicos transmitem aos filhos que a mínima excitação ou agitação poderá desencadear outro ataque cardíaco e que o mais seguro será permanecer internada no hospital.

Ora, como poderia a queda do muro de Berlim não ser uma notícia chocante?!

O seu filho Alex (Daniel Bruhls), dono de uma determinação incansável e de um amor incondicional pela mãe, decide levá-la de regresso a casa, uma vez que crê ser essa a sua vontade e sente que apenas dessa forma a conseguirá proteger de todo e qualquer sobressalto.

Assim, Alex envereda pelo maior e mais exigente desafio da sua vida, construir no quarto da sua mãe um refúgio do passado, envolvendo-a numa viagem repleta de evasões, com o intuito de convencê-la de que nada se alterou na sua ausência. À medida que a mãe adquire mais autonomia, esta revela-se uma missão cada vez mais árdua.

Sob a envolvente banda sonora de Yann Tiersen, vemos Alex a construir uma projeção da sua Alemanha de sonho, através dos mais criativos e inimagináveis mecanismos. Imbuído de grande inspiração e determinação, cria um portal para o passado através de um telejornal amador, em que um colega seu de trabalho veste a pele de jornalista e transmite notícias fruto do imaginário de Alex. Paralelamente, move mundos e fundos para obter os alimentos preferidos da sua mãe e que a integração na nova Alemanha retirou do mercado. Sem outra alternativa, vê-se obrigado a rebuscar os caixotes de lixo à procura de frascos e embalagens desses produtos (pickles, café, etc.).

Os obstáculos que vão surgindo não são poucos, desde o vislumbre pela janela do quarto de um anúncio publicitário da Coca-Cola na fachada de um prédio à visão de um fragmento de uma estátua de Lenine suspensa de um helicóptero – imagem de uma enormíssima carga simbólica e, provavelmente, a mais marcante do filme.

Filme: “Adeus, Lenine!” (2003)

Contudo, Alex jamais baixa a guarda e é sempre iluminado por alguma ideia genial para solucionar cada situação.

Para celebrar o aniversário da mãe, Alex transporta o espírito festivo para o seu quarto, organizando uma festa que, embora girasse toda à volta de ilusões, proporcionou-lhe momentos de extrema felicidade, já que reuniu todas as pessoas que lhe eram queridas. Alex planeou todos os pormenores com imenso carinho, até os mais inusitados como uma performance de duas crianças de quem Christiane tinha sido monitora num grupo a que o regime fazia questão de efetuar uma lavagem cerebral desde tenra idade.

Não desvendando mais, resta-me realçar que este filme é um cocktail que junta sátira ao comunismo, ilusões individuais, estados de negação, união familiar, exemplos de determinação, altruísmo, humanidade e vulnerabilidade, a que é impossível ficar indiferente.

Apesar de toda a ficção e aparente surrealidade, trata-se de uma história realista, passível de ser vivida por qualquer um de nós, não a tal extremo, obviamente! Mas quem nunca cometeu uma loucura por amor?! Quem não foi já tentado a omitir determinados factos que, do seu ponto de vista, poderiam provocar sofrimento a familiares ou amigos que, em dado momento, se encontravam numa situação de vulnerabilidade ou num período conturbado das suas vidas? Quantas vezes não ocultamos de um dos nossos familiares mais queridos, particularmente na reta final da sua vida, o seu real estado de saúde, uma eventual situação de desemprego, de doença ou, no pior dos cenários, o falecimento de um familiar próximo?!

Por último, revela-se uma história transversal no tempo e no espaço, quer pela sua mensagem especial quer pela crítica à cegueira que os regimes totalitários induzem e que ainda hoje se verifica nalguns estados, nomeadamente na Coreia do Norte e em Cuba, procurando “introduzir chips” na população, de modo a transmitir-lhes que não deverão acreditar noutra realidade além da nacionalista nem ter outra identidade que não a nacional, à semelhança do que escreve Yuval Arari, numa das inúmeras reflexões que constam da sua mais recente obra “21 lições para o século XXI”.

Aqui fica uma sugestão para uma noite de cinema, que certamente ajudará a quebrar a monotonia inerente a este interminável confinamento.

Artigo da autoria de Mariana Batista

 

 

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