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Crónica

O ultraconservadorismo é criminoso

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No passado dia 22 de fevereiro assinalaram-se 15 anos desde o assassinato de Gisberta Salce Júnior, a transexual brasileira atirada a um poço por um grupo de estudantes no Porto. Foi através das reportagens da comunicação social que tive pela primeira vez conhecimento do macabro caso e não pude ficar indiferente, sendo que aliada à revolta que senti ao aperceber-me da crueldade humana, estava também a deceção de descobrir um outro lado nos tempos saudosos da minha infância.

Fazendo uma viagem no tempo até 2006, vejo-me com pouco mais de quatro anos, ainda sem saber ler, pouco interessado nas “aborrecidas” notícias que passavam nos telejornais e com a crença de que o mundo que eu via com os meus inocentes olhos era perfeito. Com a passagem dos anos, fui crescendo e desmitificando essas ideias preconcebidas, no entanto sempre vi e analisei com alguma distância essa face mais negra da natureza humana. Quando descobri a história de Gisberta, senti que a minha infância foi traída e que “a maldade do mundo” sempre esteve perto de mim. Casos violentos como este, que pensei apenas acontecerem bem longe daqui, afinal também ocorrem no Porto, a poucos quilómetros de minha casa.

Desde essa época, Portugal tem evoluído bastante e várias medidas progressistas, que têm tornado possível aos portugueses viverem com mais dignidade, foram aprovadas no parlamento, aproximado o país de outras nações mais desenvolvidas, principalmente do norte da Europa.

Desde a legalização do aborto em 2007 à legalização da adoção por casais do mesmo sexo em 2016, passando também pela permissão para estes poderem casar em 2010, Portugal tem acompanhado as tendências do mundo desenvolvido e passado uma mensagem inclusiva a todos os portugueses, em prol de um futuro em que ninguém coloque em causa os direitos das mulheres, da comunidade LGBTQ+ , de imigrantes, etc.

Gisberta

Gisberta Salce Júnior
Fonte: JPN

Fruto de muitas dessas medidas, hoje Portugal está entre os 25 países mais desenvolvidos socialmente do mundo (melhorando a sua pontuação de 2015 a 2020), é a par do Reino Unido o sexto melhor país na inclusão da comunidade homossexual e é o terceiro país mais pacífico do mundo. Todas estas conquistas devem-se em boa parte ao ensino português, que tem tornado a população cada vez mais alfabetizada, próxima do que se vê no norte e centro da Europa.

Todavia, como recente ex-aluno de uma escola pública portuguesa, tenho plena noção da realidade que se vive nestas e que a diferença não é bem vista, muito pelo contrário, quem é diferente é, na grande maioria das vezes, vítima de bullying. O comportamento de manada que se viu no caso de Gisberta continua a estar bem presente nas escolas portuguesas e tem consequências graves no crescimento de muitos jovens portugueses.

Para muitos isto pode parecer exagerado, mas a verdade é que o suicídio já é a segunda principal causa de morte entre os mais jovens. Quem desvaloriza o bullying nas escolas de certeza que não está familiarizado com o que lá se passa. Por isso mesmo, quando estes dias vi o ressurgir da polémica sobre Educação para a Cidadania,– uma disciplina que fez parte de todo o meu currículo escolar (anteriormente denominada de “Formação Cívica”) – fiquei preocupado com o rumo que o país está a tomar.

Se Portugal enveredou um caminho progressista nos últimos anos, sinto que agora estamos a chegar a uma rotunda e, em vez de seguirmos em frente, corremos o risco de fazer inversão de marcha, deitando por terra todas as conquistas sociais alcançadas ao longo de mais de 40 anos de democracia. As narrativas ultraconservadoras dizem que a Educação para a Cidadania pretende doutrinar os alunos, como se ensinar os mais novos a respeitarem os outros se tratasse de política.

A cegueira ideológica que muitos têm não lhes permite ver o grande plano, nem sequer perceber que aumentar a literacia dos jovens para lidarem com a diferença não se trata de ser de esquerda ou direita, trata-se de fazer o que está certo: combater as desigualdades no país e criar um ambiente inclusivo, capaz de tornar Portugal num país com maior qualidade de vida e mais feliz para todos.

É quase unânime que o ocorrido no “Pão de Açúcar” foi um crime hediondo, mas o que muitos não percebem é que não foram apenas aqueles jovens os culpados. Por cada vez que Gisberta foi insultada, assediada, pontapeada, agredida com paus, nós, como sociedade, deveríamos fazer uma introspeção e perceber que todos nós fomos culpados pelos atos daqueles menores. Eles são o reflexo de uma educação preconceituosa e ultraconservadora que não respeita a diferença.

Educação para a Cidadania surge aqui como um veículo que fornece literacia para combater o machismo, racismo, xenofobia, homofobia, entre outros tantos “ismos” e “fobias” que nada de bom trazem ao mundo humano. Colocar em causa uma disciplina deste caráter é apenas ignorante. As novas gerações estão cada vez mais alfabetizadas, pelo que deixar a educação sobre assuntos tão importantes nos dias de hoje para famílias de gerações que não estão minimamente preparadas para os abordar é irresponsável e não é positivo para o futuro da sociedade portuguesa.

Os exemplos acima são uma prova do clima tóxico que se vive no Facebook, a rede social predileta das gerações mais velhas em Portugal. Uma caixa de comentários revela uma sociedade cada vez mais fissurada e a pender para extremismos. Acabar com Educação para a Cidadania seria deixar os mais novos à mercê de explicações pouco fundamentadas pela literacia académica, tal como se pode ver, e pior que isso, impor-lhes o pensamento das gerações mais velhas e com menor escolaridade. Isso estagnaria o pensamento, deixando de haver evolução.

É egoísta privar uma criança do conhecimento, assim como é irresponsável colocar em causa a qualidade e o profissionalismo de um professor. As forças ultraconservadoras em Portugal, sem argumentos, preferem descredibilizar tudo e todos. Assistimos constantemente a críticas a professores, jornalistas, etc., por parte de quem não tem sequer conhecimento mínimo sobre a área, nem aceitaria ser criticado pelo seu trabalho. Este é o desumilde paradoxo das facções ultraconservadoras que se opõem à lecionação de Educação para a Cidadania.

Quando o assunto é oferecer às gerações mais novas o conhecimento necessário para viverem em sociedade, não se deve colocar política ao barulho. A discussão gerada em torno de uma disciplina do ensino básico é desnecessária e em nada contribui para o interesse geral, desviando as atenções dos graves problemas económicos do país, que bem precisam de ser resolvidos.

Perder o foco dessas matérias e fazer inversão de marcha na rotunda dos valores não é admissível e apenas permitirá haver mais “Gisbertas” no futuro. Lutar contra o conhecimento é algo tão arcaico que quase nem parece ser uma realidade do século XXI. Devemos dar todas as ferramentas às crianças para contruírem uma sociedade melhor e quem a isso se opõe, provavelmente não terá boa índole. Alinhar em narrativas ultraconservadoras é pecado e, pior que isso, é criminoso.

 

Artigo da autoria de André D’Almeida