Artigo de Opinião

Uma questão iconográfica

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Camp Siegfried, Yaphank, N.Y.

Muita tinta tem feito correr o projeto de requalificação do Jardim da Praça do Império, em Lisboa, edificado para a Exposição do Mundo Português, que prevê (ou previa) eliminar o que resta dos brasões florais ali colocados aquando da comemoração dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique e por ocasião da Exposição Nacional de Floricultura.

Imaginemos, em março de 2021, jardineiros a podar suásticas num jardim público em Lisboa. «Um bocadinho para a esquerda, um bocadinho para a direita. Perfeito! Agora só falta podar os restantes três braços desta suástica, remover as ervas daninhas e podemos passar para o símbolo das SS!» À partida, parece-nos algo tirado da obra de Philip K. Dick, The Man in the High Castle. Ficamos chocados, jogamos as mãos à cabeça e tentamos negar a realidade. Afinal os nazis ganharam a guerra? O que é que está uma suástica a fazer no centro do Jardim da Praça do Império?

A História diz-nos que os nazis foram derrotados pelas forças aliadas, porém nunca ninguém viu motivo para remover iconografia nazi do meio do Jardim da Praça do Império. Há algumas décadas, alguém, munido de um programa iconográfico e propagandístico de um regime ditatorial, teve a ideia de colocar ali uma suástica. Nós deixámos estar porque concordamos com aquilo que ela representa, mesmo que pareça absurdo.

No Jardim da Praça do Império não estavam desenhadas suásticas, mas sim brasões alusivos às antigas colónias portuguesas. Atualmente, só resta um conjunto de plantas descaracterizado. Porque é que não nos choca que ainda haja quem se pugne pela persistência destes elementos visuais no espaço público? No fundo, por uma simples questão de iconografia. Não nos choca que ainda persistam elementos iconográficos pensados segundo preceitos ideológicos do Estado Novo porque a iconografia do regime ditatorial não é, de todo, muito diferente daquela a que, agora em democracia, estamos expostos. Se, por um lado, o programa iconográfico não se alterou muito, por outro, a interpretação dessas imagens, e a nossa própria memória coletiva, ainda que com pequenas diferenças, permanece demasiado dependente das leituras geradas pela propaganda salazarista.

Para um alemão, simbologia nazi no espaço público não é aceitável por tudo aquilo que acarreta para a memória coletiva nacional. Em primeiro lugar, o programa iconográfico da Alemanha Nazi não procurou dar continuidade a uma tradição pré-existente, senão em pequenos detalhes. É facilmente identificável e situável no tempo e no espaço. Em segundo lugar, é, em grande medida, resultado de apropriações culturais que procuraram forçar uma narrativa de determinismo histórico do mitológico povo ariano. No pós-guerra, esta iconografia perdeu o seu valor. Por conseguinte, a nação alemã, agora divida em dois países distintos, procurou alterar o seu programa iconográfico. Será que, com isto, a memória do Holocausto foi apagada? Parece-nos que não. A Alemanha eliminou a simbologia nazi para seguir em frente enquanto nação. Que sentido faria preservar a iconografia de um regime que teve por base o ódio racial, o expansionismo ou o belicismo? Que nações aceitariam colaborar na construção do futuro com um país que tão desveladamente se orgulha de um passado tão sombrio?

Portugal, em grande parte por não terem sido feitos esforços para cortar definitivamente com as leituras históricas e iconológicas do Estado Novo, encontra-se numa encruzilhada ideológica. O ensino da História mantém muitas das interpretações geradas pela propaganda salazarista como verdades indisputáveis e, como consequência disso, estamos a braços com toda uma nova geração de saudosistas. O Estado Novo conseguiu, em 4 décadas, banhar a ouro a relação de extrema dependência, a roçar o parasitismo, que Portugal sempre teve para com as suas colónias.

Para finalizar, aquilo que nos deve apoquentar não é o destino a dar a um jardim numa praça em Lisboa, arquitetado segundo preceitos de um regime que tinha uma visão da cidade muito distinta daquela que temos atualmente. O espaço público nunca foi visto pelo Estado Novo como um lugar propenso ao ócio. Os jardins, assim como toda e qualquer obra pública, nada mais eram que uma vitrine da força e da autoridade do regime sobre todos os aspetos da vida social e privada. Nas palavras de Lemos Martins “[…] O poder esconde-se sob as espécies de uma função social geral. Repartido por todo o espaço social, o poder está presente em todo o lado como cena, espetáculo, signo, discurso, teatro. […]”

O que nos deve preocupar é que se perpetue um discurso faccioso, alheio a novas leituras históricas, em estabelecimentos escolares e órgãos de comunicação do Estado. O património material do Estado Novo sobreviverá, como marco territorial, ideológico e operativo, enquanto se alimentar de mentiras a fogueira que o alumia. Finda esta fogueira, poderemos seguir em frente enquanto nação. Não será, como ouvi um comentador defender, necessário profiling racial para gerarmos consciência de que há retóricas e contextos nocivos à integração social, económica, laboral, académica, etc., de largas franjas demográficas no nosso país. Se chegarmos a esse ponto, estas quase 5 décadas de democracia não serviram para nada.

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