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Crónica

Dizem que não sabiam quem era

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O maravilhoso “Deixa Morrer”, por sinal a melhor música jamais escrita por um Peixe, parece orbitar em torno de um verso. Toda a composição parece ser atraída por ele, uma estrela de neutrões a perturbar o equilíbrio das forças cósmicas. Uma afirmação tão densa quanto simples. Há frases assim, capazes de transfigurar o banal que as rodeia. “É tão bom ser mulher”. A vida que Manel Cruz sopra para as palavras de Peixe deixa-me, desde a primeira vez que as ouvi assim cantadas, profundamente inquieto.

Incomoda-me. Incomoda-me, acima de tudo, a confiança com que ambos fazem tal afirmação. Perturba-me a segurança com que o retrato feminino que vai crescendo ao longo daquela melodia adquire uma consistência, no mínimo, plausível. Talvez não seja inquietação. Talvez seja apenas inveja. Um rancor latente pela aparente falta de sensibilidade que possuo para poder polvilhar os meus textos com personalidades femininas. De capturar a linha ténue que permite a um homem passar uma fronteira aparentemente intransponível. A de não pintar apenas um retrato da mulher. A de, em nome da arte de vender a alma rabiscada em papel, sê-la por breves instantes.

Mas os homens vivem reféns de um velho vício. O paternalismo. Essa chaga que subsiste como herança por milénios de imposição forçada da superioridade de um género. A ideia pré-concebida de que o que interessa às mulheres é o que nós pensamos das suas ações. A recomendação, ainda que por vezes fruto de preocupação genuína, de como agir. Que vícios corrigir. Que palavras dizer. Que carreiras seguir. Discutimos o que devem fazer com o seu corpo, como o devem (ou não) mostrar. Mas sempre da perspetiva de como nos podem agradar. Pureza. Perfeição. É o que lhes pedimos. Sem nunca considerarmos que as nossas imperfeições possam ser alvo de correção.

Haverá poucas personagens femininas, pelo menos entre as pintadas por homens, que sejam imunes a esta tendência. Algumas das minhas preferidas escondem-se num universo obscuro que começou a tomar forma há meio século. Uma existência repleta de quimeras, bestas e demónios. Intoxicado etilicamente e assombrado pela luta entre a liberdade e o vício, onde o Amor resiste num Bairro. É em seis versos que o pianista errante, arrastando a voz pelos pecados capitais, nos narra uma tragédia. O suicídio de uma mulher, que as más-línguas davam como culpada de tanto, apesar de a negarem conhecer. Não importa quem é, de facto. Importa o que simboliza. De Palma não notamos um julgamento. Apenas melancolia.

As mulheres do universo de Jorge Palma não são dele. São entidades que pertencem a si mesmas, que transcendem o papel ou a partitura que lhes serviu de incubadora. São seres que nada devem ao seu Criador, porque a sua existência não é uma dádiva. É uma condição, uma maldição. Nascemos sombras, com medo do mundo. Mas ele está lá fora, à espera de ser aproveitado. Devorado. E essa é a essência da nossa malograda benção. As mulheres de Palma poderão desejá-lo. Poderão procurar agradar-lhe. Mas por vontade própria. Porque não abdicam do único egoísmo respeitável. O amor-próprio.

Culpamos Eva pela única decisão racional tomada no Jardim do Éden. A de não ficarmos reféns da ignorância. Acusamo-la de nos ter dado a provar a semente do Mal. Mas, quando confrontados pelo medo incapacitante causado pelo Mal supremo, é numa mulher que encontramos o último reduto contra as suas garras. Desde pequenos que choramos por ela. Onde estás tu, mamã, para nos libertares dos terrores da Canção de Lisboa?

Não haverá braços de mulher suficientes para embalar o mundo. Nem terá de ser essa a sua função. Não escutem os lamentos dos homens. A vida rouba-nos alguns sonhos, mas não todos. Quem perdeu terá mais mãos para jogar. Larguem a inocência que vos forçamos a assumir. O mundo espera-vos. Cheio de tudo.

 

Artigo da autoria de Francisco Caetano

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