Crónica

Uma média, quer dizer, meia de leite, por favor

Published

on

Ser imigrante é como sair arrumado de casa, com terno, perfume e gravata, e rezar para que nenhum pássaro lhe abençoe com a sorte de ter suas roupas decoradas com ácido úrico. É aquela eterna possibilidade de uma pequena coisa dar errado – muito errado – e estragar todo o seu dia. Geralmente essa coisa é a xenofobia.

Xenofobia mesmo. Não é hipérbole, temos que chamar as coisas pelo seu nome. Xenofobia, com X maiúsculo; que em pequenas doses lhe dizem que “nasceram com samba no coração” e a grandes jogam-lhe pedras, cospem-lhe e mandam-lhe “voltar para o seu país de merda”. Nunca sei o que pensar, muito menos o que dizer, quando me mandam voltar para casa. Afinal, com contrato de arrendamento em dia e um pedido de cidadania por direito hereditário em aberto na justiça, para onde eu voltaria? Para a cidade em que eu e meus pais nascemos? Para onde consta a maior porcentagem do meu sangue segundo o meu teste de DNA? Ou, quiçá, para o lugar de onde meus avós e bisavós vieram? Mas daí seriam muitos lugares para voltar, em diferentes cantos do mundo. Família de papai veio parte da Itália, parte da Alemanha e é parte indígena. Já mamãe tem um quê de sangue negro, embora ela seja branca como papiro, e o avô dela era português – acho que era português, ou pelo menos é o que dizem os documentos. Dólar ’tá alto, passagem ’tá cara. Se me pagarem o voo e a hospedagem, eu volto para onde quiserem. Seja para o Brasil, Angola, Moçambique – ouvi dizer que existem lindas praias em Cabo Verde. Não nego viagem, sou rata do mundo. Cidadão global tem dessas. Isso é por ter nascido na geração da informação e lido demais daqueles livros de “50 lugares para se viajar com menos de 50 dólares por dia”.

Mas ser imigrante é isso mesmo. É lhe mandarem voltar para casa quando você já está em casa. Literalmente. Todo imigrante tem um vizinho assim. É te perguntarem o que você está fazendo por aqui quando você só foi comprar um pão. É escutar que você é branco demais, educado demais, inteligente demais, tudo demais para ser quem você é. Brasileiro mesmo? Mas tem certeza? Brasileiro não, por favor; mais respeito. Sou carioca. Rio de Janeiro que é o meu país, respeita a minha infância sem governos de esquerda e os dez anos que eu vivi longe de Copacabana e sem conhecer o Cristo Redentor nem o Pão de Açúcar– mas indo todo final de semana para a Baixada visitar a vó, pegando uma praia na Zona Oeste, com direito a bastante biscoito Globo e água de coco geladinha.

Não tem muito o que fazer. Decidir imigrar é, em essência, decidir sofrer xenofobia. C’est l avie, mon amour, le monde continue de tourner. Todo imigrante sabe disso. Se não sabe, descobre na hora que imigra. Geralmente já começa no aeroporto, com olhares e perguntas tortas. Sim, vim aqui para estudar. Sim, tenho visto de estudante. Não, não sou turista. Sim, tenho o visto. Aqui, o visto. Sim, isso é um visto. Sim, isso me dá autorização para morar aqui. Não, não estou entrando de turista para ficar. Eu já tenho autorização para ficar. Eu sei, turista só pode ficar três meses, mas eu não estou vindo à turismo. Não, eu também não vim para trabalhar, eu vim para estudar. Sim, estudar. A graduação toda. Não, não é mobilidade. Eu sei lá se depois da faculdade vou querer continuar aqui.

São muitos pormenores.

É por isso que todo imigrante é um pouco masoquista. Porque imigrar é sofrer. Simples assim. É sofrer nas mãos do Estado que acolhe e recebe, desde que você consiga superar a burocracia. A burocracia… Aquelas dezenas e mais dezenas de formulários que você tem que preencher, as taxas que você tem que pagar, as declarações que você assina, para, por fim, nenhum funcionário público saber o que fazer com você. Afinal, eles não o querem ali – o que um estrangeiro traria de bom para o país? Quem se importa com os 884 milhões de euros líquidos para a Segurança Social? Assim, é mais fácil mandar o forasteiro assinar mais alguns formulários, pagar outras taxas mais e procurar o consulado do que conferir o regramento burocrático para o caso dos imigrantes. Sequer o SEF, sim, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sabe o que fazer com os estrangeiros. Manda pagar mais uma taxa administrativa que resolve.

Depois de um tempo, a gente aprende a acompanhar o diário da República e a imprimir a legislação na hora de lidar com os males weberianos. Quem não tem cidadania, caça com autorização de residência.

Por essas e muitas outras que imigrante é masoquista. Afinal, poderíamos estar em casa, em um regime totalitário, correndo o risco de ser preso por chamar o presidente de genocida pelo nome – chique, afinal, a censura orwelliana está em alta, com um câmbio desvalorizado, crise econômica, crise sanitária, sem perspectiva de futuro, menor qualidade de vida e sendo tratado que nem gente. Porque no nosso país, a gente é gente. Imigrante não. Imigrante é outra coisa. Imigrante é imigrante. Gente é gente. Estrangeiro e do sul global é uma subcategoria, quase como uma subespécie sem alma. Serve para pagar imposto e ocupar subempregos, mas não para ter regalias, como dignidade. Onde já se viu, imigrante de país pobre e com dignidade? Aí já é pedir muito. Basta o documento regularizado.

É masoquismo, não tem outro nome. Mas é porque na dor a gente encontra um certo deleite. O prazer é mais genuíno quando se sofre. É como encontrar uma maçã crocante e fresquinha no meio do cesto cheio de maçãs meio passadas. Você se sente especial – escolhido, até. A felicidade fica mais feliz. É como se o bom ficasse mais bom, se é que tem como a bondade se dar dessa forma. É o mesmo princípio de se tomar o café sem açúcar, ou o banho sempre frio. Deixa a vida menos amarga e os invernos parecem ser mais quentes – tudo é questão de comparação. Quando se sofre, qualquer falsa piedade basta.

Dessa forma, para um imigrante, toda gentileza é desmedida. Afinal, como já disse, todo dia saímos de casa rezando para que nenhum pássaro batize nossas roupas, tão limpinhas, tão macias, com seu maldito excremento. A gente espera pelo excremento. É quase como um estado de medo perpétuo por todas aquelas vezes que tivemos nossa blusa branquinha manchada de cocô de gaivota quando menos esperávamos. Como quando o seu professor, aquele que tinha falado que não tem problema nenhum escrever em outras variantes de português na prova, diz que não entende brasileiro e pede para repetirem a pergunta em português de verdade; ou quando o cara com quem você estava conversando deixa a entender que só quer te comer mesmo, que você é leve e divertida porque brasileira é assim, tudo puta. Depois de um tempo, você passa a estar preparado. A não se assustar mais quando a roupa suja. A esperar que sua roupa se suje. Aprende-se com a experiência e com os erros – e imigrante não pode cometer erro. Imigrante errado é ilegal e tem que ser deportado. Quando se é deportado deixa de ser imigrante.

Mas esse estado de medo é positivo, porque toda pequena gentileza feita a um imigrante vira um grande feito. Muda o dia da pessoa. Como, por exemplo, quando me venderam um café.

Sim, simples assim.

Lembro até hoje desta tarde de primavera. Era frio, mas não tão frio. Mas frio o suficiente para se usar um casaco e se sentir aconchegado. E o dia estava nublado, com vento e tristeza. Bastante tristeza, porque a vida é assim mesmo. Resolvi caminhar e, depois da caminhada, parei para tomar um café. Entrei na loja mais próxima e esperei. Cumprimentei o atendente e o outro cliente que lá estavam e pedi:

Uma média, quer dizer, meia de leite, por favor.

Pequenos lapsos, às vezes acontece. No Rio – meu país, Rio de Janeiro – chamamos o café com leite, a famosa meia de leite portuguesa, de média. Me desce uma média, diz o carioca no dia a dia, depois do trabalho, ou antes do expediente. Erro, erro rude para um imigrante. Já é uma audácia nossa ter sotaque; falar com as nossas gírias, então? Um ultraje. Com vergonha da minha confusão, preparei-me. Esperei. Onde estavam os pássaros? Dessa vez eu merecia. Realmente merecia. E.

E serviram-me o café com leite. Serviram-me a meia de leite.

E eu entendo seu espanto, leitor. Extraordinário, não? Serviram-me o café sem sequer me fazerem repetir o pedido ou exaltarem o meu erro de ser estrangeira. Só me serviram o café, sem me corrigir nem nada.

E quando eu saí da padoca, meu caro leitor, o sol raiava, e as gaivotas gargalhavam e a música tocava porque a felicidade de ser gente quando se é imigrante não pode ser mensurada.

Tem um quê de masoquismo em sair da sua terra em busca de aventuras.

Mas, fazer o quê? O mundo é muito grande e o prazer de lhe servirem uma média é grande demais para ser explicado. Ser imigrante é isso.

É sofrer e ser feliz em seu sofrimento.

 

Artigo da autoria de Débora Magalhães Binatti

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version