Crónica

Como citar a Bíblia?

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O jovem universitário é o paradigma da diligência. Opinião controversa, a minha, certamente. Com certeza, contraintuitiva. Contudo, também, inegável. Não há mais zelo no mundo do que na alma do estudante de ensino superior.

Diligente, sim. Mas com suas razões. Geralmente razões alcóolicas e libidinosas, que escondem em si o ar azedo da juventude que anseia por ser vivida. Mas com suas razões. Digo isso partindo de uma conversa que tive com um de meus colegas recentemente. Tenho, dessa forma, embasamento. Empírico. Porém, não deixa de ser embasamento.

A conversa se deu entre uns goles de café que não era para ser gelado, porém o estava, e algumas reclamações sobre o docente daquela matéria obrigatória que ninguém gosta, mas é fácil de passar. Meu amigo, muito aplicado nas artes de beber vinho às quartas-feiras antes do sol se pôr, confessou-me um problema que estava enfrentando. Imenso problema que ameaçava diminuir a média geral de suas notas. Tendo decidido ser um estudante minimamente dedicado neste semestre, contrapondo seu hábito natural, resolveu fazer uma disciplina opcional um pouco mais desafiante que o de costume. Disciplina esta que apresentava uma avaliação contínua, contando com o trabalho analítico. O trabalho era simples: escolher um tema e escrever um artigo. Proto-artigo, para ser sincera. Precisava ter uma capa, sumário, de cinco a sete páginas, anexo e referências. Coisa fácil, práxis da faculdade.

Meu amigo, como disse, por ser um grande adepto da uva fermentada no lugar da boa e velha água, decidiu escolher um tema que o refletisse. Um tema com que se identificasse. Que fosse familiar, por assim dizer. E, por isso, resolveu escrever sobre Jesus. Afinal, tal figura histórica e religiosa era, como a si, um grande enólogo. Figura simpática, carismática. Escolheu como tema então: “Uma análise epistemológica e social acerca da imagem de Jesus Cristo na socialização de crianças dentro do contexto sociocultural judaico-cristão da cidade do Porto”. Coisa simples, coisa fácil. Faculdade tem dessas.

Escolhido o tema, meu amigo – vamos chamá-lo Francisco – meu amigo Francisco começou o longo processo que todo bom universitário faz após escolher o tema do seu trabalho. O processo de procrastinação. Ignorou o maldito trabalho fazendo tudo que lhe era possível dentro das normas da DGS. Aprendeu a assar pães em casa, descobriu uma ótima receita de macarrão integral, aprendeu a fazer crème-brûlée. Quando começou a se entediar na cozinha, releu todos os livros daquela enorme saga que gostava tanto na infância e descobriu que a autora havia repercutido com algumas falas polêmicas – potencialmente preconceituosas – acerca de gênero e sexualidade na internet. Falando em internet, Francisco também criou uma conta naquela rede social chinesa que o ex-presidente Donald Trump tinha proibido nos Estados Unidos, mas que fazia o maior sucesso entre a garotada mais nova. Gravou uns vídeos dançando, outros dublando cenas de filmes. Até que, três dias antes de entregar o artigo: “Uma análise epistemológica e social acerca da imagem de Jesus Cristo na socialização de crianças dentro do contexto sociocultural judaico-cristão da cidade do Porto”, lembrou que o trabalho existia e passou para a segunda etapa do feitio da tarefa.

Entrou em pânico.

Não chorou porque chorar é admitir o erro – e procrastinar um dever da faculdade nunca é um erro, mas sim um dever estudantil. Respirou fundo, olhou-se no espelho e fez o que qualquer um faria: perguntou no grupo do telefone para nossos colegas como eles estavam fazendo o trabalho. Com base nas respostas, começou a montar a bibliografia de sua pesquisa.

Giddens, é importante se voltar aos clássicos.

Pedro Abrantes, porque era um favorito do docente.

Nietzsche, afinal, um pouco de pedantismo não faz mal a ninguém.

Convenção sobre os Direitos da Criança, talvez? Para deixar as referências mais diversificadas.

James Frederick Ferrier, não sabia quem ele era, mas parecia ser alguém importante.

E a Bíblia.

Agora, como citar a Bíblia?

Foi com essa pergunta que Francisco interrompeu minha pretensão de sono às duas da manhã de uma quinta-feira, enquanto a insônia maltratava-me trazendo à tona traumas de infância que se tornariam pesadelos dali a algumas horas na ausência de algumas gotas de clonazepam. Como a gente cita a Bíblia?

Algo que, devo admitir, até aquele momento nunca havia refletido muito sobre. Como citar a Bíblia com referências bibliográficas de acordo com as normas internacionais? Porque as normas são claras. Simples, até. Tomamos por exemplo a APA.

Toda citação bibliográfica depende de seus elementos de citação. São sua alma, por assim dizer. O que difere a criança do cientista, a sua tola opinião de um belo argumentum ad verecundiam. Não são muitos, os elementos, porém, são essenciais. São eles:

Nome do autor.

Data da publicação.

Título.

Número da edição.

Editora.

Local da publicação.

A partir desses elementos, estrutura-se a citação da seguinte forma: cita-se o nome do autor, escrevendo à frente o seu sobrenome e somente seguido de uma vírgula as iniciais de seu nome próprio. Daí, entre parênteses, se aponta a data de publicação. Ponto. Escreve-se o título. Ponto. A localização da editora, isto é, o local de publicação. Ponto. O nome da editora. Por fim, o número da edição. Se a cotação for feita dentro do corpo do texto, é necessário ainda a página do livro, mas isso não vem ao caso. O trabalho é sintético, normativo. Basta ter acesso às informações.

Agora voltamos para a Bíblia. Como que um pobre estudante cita a Bíblia?

Começando pelo autor. O que se escreve? CRISTO, J.? Mas não foi o Senhor que escreveu o Sagrado Livro com suas próprias mãos. Quais são os sobrenomes dos apóstolos? Não havia em Jerusalém duas pessoas com o mesmo nome, por isso, não eram necessários sobrenomes? Ora, mas há dois Tiagos, então, há de se fazer distinção. Contudo, na Bíblia distinguimos os Tiagos por seus pais, Zebadeu e Alfeu. Assim, para citar as Epístolas de Tiago, escrever-se-ia ZEBEDEU, T.? Mas não se sabe se as malditas epístolas foram de fato escritas pelo Tiago, filho de Zebedeu, ou pelo outro Tiago – ou ainda por um terceiro Tiago que não havia entrado na história. E nem vamos entrar no Velho Testamento, porque nessa época não havia apóstolos para escrever a palavra do Senhor – seria a autoria do Gênesis de algum entediado filho de Noé?

Seguindo para a data de publicação. Qual seria? Ano zero? Qual foi a data da primeira edição, aquela escrita à mão pelos primeiros cristãos enquanto fugiam das legiões romanas? Ou, deveria eu escrever a data da minha edição, que comprei na livraria mais perto de casa uns três anos atrás e foi reeditada em 2017? Soa demasiadamente estranho CRISTO, J. (2017). Bíblia Sagrada. E alguém ainda está contando quantas vezes já reeditamos o digníssimo livro? Eu não estou a par dessa informação, tampouco consta na minha cópia.

Se Francisco conseguiu terminar o seu trabalho sobre Jesus e as crianças e sociologia e essas coisas, eu devo admitir que eu não sei. Respondi-o naquela madrugada mandando-o para lugares distantes e ineloquentes por ter interrompido a minha tentativa de dormir num horário antes da madrugada virar manhã. Só sei que o maldito me amaldiçoou com essa questão sem resposta que tomou extensas horas dos meus dias e tirou o meu sono diversas vezes ao deitar-me na cama.

Foram dias remoendo, rumando, questionando. Como citar a Bíblia? Como fazer uma referência bibliográfico do livro sagrado? Orgulhosa, não queria andar por caminhos fáceis, então, recusava buscar a resposta na internet. Eu conhecia as normas: era tudo explícito, prático. Agora, como citar o Sagrado, porém, dispendioso livro?

Meu sofrimento só teve fim quando me dei por vencida e li as longas páginas da ABNT – que, humildemente e com muito patriotismo, devo dizer, é infinitamente melhor que a APA – para descobrir como fazer a infame citação. Mais simples e lógico do que eu imaginava. Minha aflição terminou com uma sensação agridoce, o típico “como eu não tinha pensado nisso antes”.

E como se cita a Bíblia, caro leitor?

Ora, agora cabe à sua diligência descobrir.

 

Artigo da autoria de Débora Magalhães Binatti

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