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Crónica

Síndrome do Impostor

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“Aceitou a garantia dada, como se a sua certeza fosse factual. Pouco lhe importava a origem de tal informação. Palpite, previsão. Ou mesmo que fosse uma mentira descarada. Ele sabia a verdade. E alguém lhe tinha finalmente dado forma para além daquilo que existia dentro dele. A princípio uma inquietação metafísica, demasiado intensa para a ter materializado em pensamento sozinho. Cresceu como um tumor, toldando-lhe a lucidez. Mas ei-la, agora, em todo o seu esplendor. Existia no reino da palavra falada e, consequentemente, pertencia à realidade dos homens. Era sua.

Agradeceu à mulher. Com dinheiro, claro. As profissionais do oculto eram bem claras (e inflexíveis, diga-se) nas suas exigências monetárias. Afinal de contas, é uma arte. Como todas as outras, há quem a pratique por necessidade, outros por vocação. Que interesse têm as intenções do artista para o cliente se a obra for do seu agrado? Quem pagou é que tem de sentir, ora essa. E ele sentia. Alegria, esperança, liberdade. E a mente leve, ao fim de tanto tempo. Soube-lhe bem este breve exercício mental, já sentia saudade das suas próprias opiniões.

Desceu as escadas do velho prédio. O apartamento da vidente, bruxa para os maldizentes, ficava no primeiro piso de um edifício de dois andares que já tinha visto melhores dias. Era escuro e o cheiro a incenso já não se distinguia do papel de parede. A sinestesia será, certamente, consequência da falta de oxigénio. Teve apenas acesso à sala de consultas. Uma mesinha redonda, uma poltrona para a anfitriã e uma única cadeira para clientes. Não aceitavam consultas aos pares, talvez por ser mais fácil, assim, impingir falcatruas. Duas cabeças pensam melhor que uma, já dizia o outro. Ou então por a introspeção ser uma experiência mais poderosa quando é feita de modo solitário. Questões para a ciência quando se esgotarem os seus problemas terrenos. A luz despertou-o do transe potenciado pela humidade quando chegou à entrada daquela ruína em tijolo.

O mundo exterior ignorava o seu regresso à banalidade. Ligou o telemóvel para consultar as horas, já não usava relógio no pulso. Era um luxo decorativo nos tempos que correm. Talvez um dia, quando o Sol derreter toda a bugiganga eletrónica, recuperem a sua utilidade. Incrível como o passar dos anos transforma o apocalipse. Na infância, um medo do desconhecido. Na idade adulta, uma mera brincadeira. Uma esperança, até, nos dias mais enfadonhos. Duvidava que fosse como nos filmes. Confiava mais nos livros como cronistas do desastre iminente. Até porque quando a bomba explodir, estar a vê-la é mau augúrio.

Mas hoje o dia não convidava ao estudo dos possíveis infortúnios da extinção em massa. O dia era de folga, o sol ainda ardia à distância e as poucas nuvens que davam vida à monotonia azul não pareciam constituir uma ameaça. Nem parecia um dia de abril. As calotes polares não se estavam a sacrificar em vão, paz à sua alma. Encaminhou-se para a praia para lhes prestar a sua diluída homenagem. A pé. Uma boa caminhada nunca fez mal a ninguém. Lembrou-se. Corria-lhe pelas veias, era quase palpável neste momento.”

 

Cruzamo-nos enquanto caminhava para a praia. Que destino poderia ter a personagem de um conto falhado, senão o de ficar congelado no tempo, na esperança de que o seu criador o liberte da sua prisão criogénica. Reencontramo-nos em mais uma busca necrofágica do seu autor por textos condenados ao esquecimento. Um ritual que se repete com uma frequência proporcional à dos bloqueios criativos que assolam esta pobre alma que quer ser digna do título de artista.

E os meus, confesso, têm sido cada vez mais frequentes. A impotência reveste-nos como um véu. Falo no plural, em nome das personalidades que, uma vez por outra, assinam os seus devaneios em meu nome. Consequências do direito à identidade, a tradição heteronímica não me assenta bem. Mas as desculpas multiplicam-se. A falta de tempo. A falta de vontade. A falta de inspiração.

O consumo de séries dispara. Os filmes seguem-se, em catadupa. Folheio livros, revistas, álbuns. Tudo o que possa acender este rastilho. Basta uma frase. A primeira. A derradeira. O desbloqueador para o que teima em não sair. Basta isso. Peço, reclamo, exijo. Mas não surge. E a dúvida, aquela de sempre, assume o comando das operações. Serei uma fraude? Terei sobrestimado as minhas mais-valias, vendido gato por lebre, em nome de algo que nunca terei capacidade para alcançar?

Não visito os sucessos. Visito os que se perderam pelo caminho. Os textos que, por uma razão ou por outra, não mereceram uma publicação. Que nunca tiveram direito a libertar-se do edifício bafiento em que a artista da adivinhação tem o seu consultório. A forma verbal mantém-se no presente, porque todas estas histórias decorreram, decorrem e decorrerão nesta cela quântica a que estão confinadas. Não têm passado nem futuro.

Penso neles como pensamos naqueles com quem perdemos o contacto. Questionamo-nos acerca do que será feito deles. Até porque todas as nossas interações são feitas de histórias inacabadas. As vidas dos outros, aos nossos olhos, param sempre a meio. Podemos cair na tentação de lhes imaginar um fim, pelo menos um final de temporada, mas por pouco tempo. Perdemos acesso à sua emissão e ocupamos o seu vazio com uma nova transmissão, as aventuras do vizinho do segundo andar, por exemplo.

Também para este homem, cujo primeiro ato ainda me parece ter potencial, tentei imaginar um fim. O primeiro de todos envolvia o matricídio, num ato de compaixão. Um sonho febril potenciado por um episódio de BoJack Horseman, em que tocava Sea Of Dreams. Apesar das boas intenções, era fraco. Insuficiente. Francamente bem escrito, modéstia à parte. Mas não fazia jus ao que o conto merecia. Abandonei-o como peça integral, reciclando algumas das suas frases em criações mais recentes. Não como homenagem, mas como subterfúgio ocasional.

Reencontramo-nos. Do circo de autocomiseração a que me tinha condenado emergiu, antes tarde do que nunca, alguma lucidez. Talvez a sua magia esteja encerrada no seu mistério. Na ânsia de não saber o que acontece. Ocorreu-me que o autor não tem de fazer do simbolismo um refúgio premonitório. O autor pode, simplesmente, libertar a personagem da sua vigilância omnisciente. E tem o direito de não lhe querer imaginar um fim. Da epifania, as palavras começam a fluir.

O bloqueio foi levantado. Durante algumas semanas, pelo menos, o cessar-fogo com a pressão do processo criativo volta a vigorar. Ao libertá-lo, liberto-me. Talvez o fim não tenha fim. Mas o dele já não me pertence desde que o vi a tirar os sapatos antes de pisar o areal.

 

Artigo da autoria de Francisco Caetano