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Artigo de Opinião

Pensar a filosofia: da teoria à prática pela narrativa

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Criada por Michael Schur, The Good Place leva-nos a passear pelos caminhos da Filosofia, em especial pelos da Ética e da Meta-ética. Cheia de surpresas e reviravoltas, a narrativa descomplica o que parece a priori complicado. Não a Ética, leia-se, porque essa disciplina é das mais complexas que a Filosofia pode oferecer, mas o método de a pensar, a ela e à própria Filosofia.

A narrativa tem meandros de que nem um tratado, nem os diálogos de Platão – ele que me perdoe – podem alcançar. Já Aristóteles o dizia na sua Poética: “De preferir às coisas possíveis mas incríveis são as impossíveis mas críveis”. É que a narrativa apresenta sempre exemplos e faz-nos pensar nos contra-exemplos respetivos e, mais importante, nas consequências dos atos do ser humano e como estas moldam a nossa forma de pensar a ética.

Não é involuntário que tenham escolhido quatro extremos de personalidades opostas. De um lado temos Eleanor, representante dos que  regem a sua ação pela doutrina do hedonismo – com laivos de egocentrismo por diante -, do outro temos Tahani, aparentemente o seu oposto – uma filantropa cujas ações escondem intenções, também elas, egocêntricas. Chidi é um professor de Filosofia e Ética a quem tanta leitura confunde a ponto de não poder fazer as mais simples escolhas e Jason, um rapaz com historial criminoso, mas de coração ingénuo. Nenhuma destas personagens age eticamente durante a vida, atrevo-me a dizer, seja porque a sua motivação é corrupta, seja porque não lhes é dada alternativa para o mal que praticam e causam no outro. Mas podemos dizer tão perentória e sucintamente que são imorais nas suas ações? De outro modo, que são más pessoas?

“Hell is other people” diz Satre na sua peça No Exit, explicando que é na nossa relação com o Outro que perdemos a nossa liberdade, pois ela condiciona a maneira como nos vemos a nós próprios. Sentimos inveja, sentimos receio, pensamos ter a necessidade de criar uma imagem que o outro aceite como boa – sem descurar que, na realidade, suprime o Outro – sentimo-nos confusos nas nossas interações. E são essas inseguranças que nos motivam a agir de determinada maneira, de forma i- ou amoral.

O processo composicional da obra é claro – faz-se de uma escrita que pede a reescrita. O estilo, a narrativa e a narração apresentam uma coesão muito estável, com especial preferência pela brevidade. Simultaneamente analítico, em termos temáticos, mas sintético na apresentação das ideias e dos respetivos pensadores, The Good Place oferece muito material para os que gostam de explorar a Ética pela leitura. Agarre-se no papel e na caneta porque a lista aumenta a cada episódio. Eis algumas referências: Platão, Aristóteles, John Rawls, Lao Tzu, John Locke, Nietzsche, Immanuel Kant, David Hume, Scanlon, Todd May, Henry Sidgwick e Stuart Mill.

Mas o momento alto da série é-me, pessoalmente, o do trolley. Já desde a infância que ouço esse problema vezes e vezes sem conta e de cada vez que penso sobre ele mais me convenço de ser um falso dilema. Isto porque, para agirmos de modo ético, teríamos de pensar no momento sobre se devemos puxar a alavanca ou não. Ora, numa situação destas, e como a narrativa bem demonstra, não temos tempo suficiente para o fazer. Portanto quer salvemos cinco, quer uma pessoa apenas – independentemente de serem pessoas ‘importantes’ ou não -, a ação não foi suficientemente deliberada para que a ação pudesse ser considerada voluntária e, consequentemente, ética. Por outras palavras, não tivemos liberdade de escolha.

Igualmente importante é pensar sobre se as aulas de Chidi mudam a nossa maneira de pensar o mundo e a forma como interagimos com ele. Enquanto Eleanor ganha alguma capacidade de discernir – e mais premente que isso -, de atuar eticamente, estará toda a teoria na origem dessa mudança, estará a vontade de Eleanor em se tornar melhor pessoa ou estará ainda a relação que esta mantém com os três companheiros? Seremos capazes de mudança ou estaremos constantemente a lutar contra impulsos e desejos que sabem bem, mas fazem mal – a nós e/ou a outros? Será a moralidade um mero reflexo das emoções do sujeito que atua mediante o seu estado de espírito ou algo que se aprende por imitação? Somos livres de escolher ser boas pessoas ou estamos determinados a agir de forma automática, mas aparentemente voluntária? A resposta à primeira pergunta é, a princípio, óbvia, Eleanor sente o desejo – mais uma vez egocêntrico e hedonista – de permanecer no paraíso e de se não descobrir que ela não pertence ali. Mas à medida que avançamos na história, a coisa torna-se mais profunda e difusa. Às restantes perguntas já não encontro respostas, já que remetem para várias outras questões não só éticas como também do foro da epistemologia, do existencialismo, da psicologia, da neurociência e seus problemas. Ainda uma outra questão se propõe relativamente à rigidez dos princípios que guiam a conduta humana – se mentir é completamente imoral, então não posso mentir para salvar a vida de uma pessoa ou para a poupar do sofrimento de saber que tem uma doença terminal, por exemplo. Por outro lado, a flexibilidade dos princípios não poderá significar a justificação de qualquer ato.

Quanto à mudança de Eleanor, a minha interpretação segue na linha das interações que ela decide manter com os amigos de viagem, que suscitam nela a capacidade de desenvolver a sua empatia. Ainda o caso de Janet, por exemplo. Programada para o bem, o mal ou inserindo-se numa zona neutra, também no final da série se demonstra a capacidade de mudança, quando a bad Janet se decide a ajudar o grupo. Afinal de contas, heaven is other people.

Deixo ainda um vídeo interessante sobre este assunto.

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