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Artigo de Opinião

A era dos homens promissores

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Há uma dificuldade no mundo da escrita que penso que nem os escritores percebem. E talvez quem agora lê este texto esteja igualmente confuso, a questionar-se “Onde vai isto dar?”. Mas fiquem mais um bocadinho e prometo explicar. É que, sabem, quando se tem muito que dizer, falta saber como. Toda a gente conhece a sensação de turbilhão emocional, quando todo o nosso corpo parece eletrizado e os órgãos a recuperar de 20 mil cambalhotas interiores.

Esta sensação de confusão quase que palpavelmente física pode advir de diferentes circunstâncias, apanha-nos inevitavelmente desprevenidos, e mantém-se, por momentos, à superfície de nós mesmos, sem tempo para ser absorvida ou assimilada. No meu caso, acho que falta o tempo: esse contador esquisito que separa o hoje de ontem e do dia de amanhã. Preciso desse processo místico, o mesmo que permite transformar o turbilhão de emoções num discorrer de pensamentos que encham esta página branca, tenebrosa e tão apetecivelmente vazia.

Talvez seja melhor irmos por partes. E como começar pelo princípio sempre me pareceu uma forma lógica de contar uma história, recuo até ao dia de ontem quando me sentei no sofá e pensei: “E agora, que faço eu?”. Desse momento ao seguinte, o tempo contou os instantes que me conduziram a uma história poética de uma mulher bastante promissora. Isso mesmo: “Promising Young Woman”, assim se chamava, e promising young woman ela foi. Realizado por Emerald Fennell, como filme de estreia,  protagonizado por Carey Mulligan, “Promising Young Woman” apresenta-nos um ambiente cáustico, psicótico e aterrorizantemente lúcido.

Em pleno século XXI, gostamos de pensar na nossa sociedade como evoluída. Somos a era digital, temos a resposta de todos os porquês com uma simples pesquisa no Google. A informação nasce-nos nos polegares, a conexão é impreterivelmente constante. Somos a época do cancelamento, do moralmente correto, da abolição das torturas. Somos a sociedade de movimentos maiores que cada um de nós, os criadores do #MeToo, os julgadores do abuso, do assédio e da agressão sexual. Mas seremos mesmo?

O cronómetro marcou um total de 1h e 54 min de “Promising Young Woman”, esse thriller arrepiante, com um humor escuro e ao mesmo tempo leve, essa volta ao estômago que nos arrasa com uma verdade arrebatadora. O tempo deixou-me ficar durante 114 minutos a andar à roda, como que dentro de uma máquina de lavar. E como fruto do século XXI que sou, fui sugada para dentro do ecrã, alienada da realidade exterior. E que viagem!

Cassie Thomas, uma rapariga de 30 anos, a viver na casa dos pais depois de desistir da Faculdade de Medicina, parece tudo menos uma pessoa provável. Pelo menos uma vez por semana, esta mulher dirige-se a um bar e finge-se bêbeda: não levemente tocada e solta, não sedutoramente desinibida, mas inebriada ao ponto de lhe falhar as pernas, da cabeça cair e de poder ser usada e abusada. São linhas engraçadas, as que escrevo: “poder ser usada e abusada”. Haverá algum estado, inebriado ou não, que indique ao mundo exterior que estamos disponíveis para o abuso?

Bem, Cassie prova essa crença social todas as noites. Falsamente bêbeda e desprotegida, observa, um por um, os predadores tão preocupados e altruístas que só querem confirmar se a senhora estará bem. “Sou vou ver se precisa de algo”, dizem todos. Mas nós, mulheres deste século, do passado e de todos os anteriores, sabemos bem que não é assim. Não é uma preocupação sensata e real… não nos querem bem, querem sondar qual o estado em que estamos e avaliar qual o possível estado a que podemos chegar com eles.

Mas Cassie mantém a personagem. Continua bêbeda, frágil, maleável a todos aqueles homens, engravatados ou não, com dinheiro ou sem ele: a maldade não escolhe classes. E porque este mal é tão socialmente condenável e punido (é?), o predador escolhe a sua casa, um beco abandonado, um lugar recôndito, onde possa abusar desta mulher tão abusável.

Sem desfazer a farsa, Cassie deixa-se levar até ao momento exatamente anterior ao início da violação. Permite que cada um daqueles homens tão aparentemente simpáticos e moralmente corretos demonstre como é, o que quer e o que pretende fazer com uma mulher aos caídos, mulher inebriada e sem noção, mulher quase sem forças para dizer que não. É nesse momento que Cassie demonstra toda a sua lucidez, procurando oferecer pequenas lições ao sexo masculino que, ainda nesta era de todas as moralidades, se sente impunível e no direito de fazer o que bem entender com o corpo de uma mulher.

A certa altura, diz a um: “Como eu, há muitas. Uma dessas mulheres carrega sempre tesouras… Não acreditas? Tenta uma próxima vez e descobres.”. Embora um pouco assustador, como mulher soube-me bem a ideia dos homens viverem nessa roleta russa noturna com que nós temos que lidar todos os dias. Porque não é o movimento #MeToo que nos salva, nem as conversas moralistas de refeitório, nem as palestras da GNR na escola. Nada nos salva, a não ser 4 pares de olhos de cada vez que saímos de casa e alguma sorte à mistura.

Cassie somos todas nós, mas obcecada, compulsiva, assumidamente descompensada aos olhos facilmente julgadores do público exterior. Carrega consigo um bloquinho que pinta com tracinhos vermelhos e azuis cada um destes predadores que encontra. Mas porque é Cassie assim? O que poderá ter acontecido na vida desta jovem para a tornar tão obstinada e avulsa?

Quando a personagem poderia ser dada como “normal”, apenas uma jovem estudante a viver os melhores anos da sua vida, Cassie viu a sua melhor amiga sofrer uma violação na faculdade. Num quarto cheio de rapazes, Nina foi violenta e consecutivamente violada. Quando quis falar, foi ignorada, desacreditada, calada com todas as amarras que a sociedade ainda hoje usa para oprimir. Nina Fisher, o nome que Cassie carrega ao peito e a sua dor maior.

Mas “Promising Young Woman” traz-nos a vingança de uma mulher magoada e estagnada pelo choque. Sete anos após o incidente, a morte de Nina e a desistência da faculdade, Cassie começa a sair com um ex-colega do curso que, para espanto de muitos, ainda mantém contacto com os colegas da época, entre eles Al Monroe, o rapaz capaz de violar uma rapariga repetidamente em frente aos amigos.

Deste ponto em diante, as cenas seguem-se apresentando-nos novas personagens: a amiga da faculdade que as ignorou, a diretora da universidade que fechou os olhos, o advogado assustador que calou uma tentativa de justiça. Todos eles cúmplices de um ato sem represálias. Porque Al Monroe, outrora acusado de violação, é um “promising young man”, há-de continuar a ser um médico reconhecido e casar bem.

Mas Cassie tem uma dor que o tempo soube converter em vingança. Uma vingança fina, astuta e que sabe roubar a respiração a qualquer um. Uma vingança delineada que se vai desenrolando lentamente e que resulta num destaque ainda mais forte, ousado e chocante da cegueira social que se espalha por todos nós.

Num confronto direto com Al Monroe, Cassie acaba por ser dada como desaparecida, e nem o tal ex-colega de Medicina, quase namorado, quase paixão, quase relação, o rapaz que dias antes diz que a ama, tem a coragem de contar a história e declarar que Cassie poderá estar em perigo. Assim, em nome de uma justiça facilitada e pouco minuciosa, um movimento subtil inicia-se: concluir que Cassie já estaria num mau estado psicológico, que terá fugido com os seus próprios pés. Dai em diante, a sorte é sua, a responsabilidade só sua.

Engraçado como somos responsabilizadas até pelo que nos acontece.

Porque até a amiga da faculdade, a diretora da Universidade, o representante da Justiça, porque até o namorado que a ama acreditam que será sempre a mulher a maluca, a descompensada, a tão irresistivelmente abusável. Seja em que circunstâncias for, tenha os testemunhos que tiver, o homem será promissor e a mulher esquecida na sua própria desgraça.

E para todos os que pensarem que isto é apenas ficção e que Mundo finalmente mudou, desenganem-se. “Promising Young Woman” nada mais é que baseado numa história de um jovem acusado por violação na Universidade de Stanford em 2016. E, por ironia, ele cumpriu o título e tornou-se esse homem promissor.

 

Artigo da autoria de Inês Antunes