Crónica

‘Free Churro’

Published

on

Nunca me tinham contado que, quando o nosso avô morre, recebemos um fato. Muito menos que, horas antes do funeral, temos de correr o centro comercial em busca de uns sapatos que lhe assentem bem. Também não me contaram que o tamanho que calço estava sequestrado por um dos manequins da montra, cujos pés, ainda que inertes, se recusavam a ceder aquele piso emprestado às empregadas da loja. Não me ocorreu, ao longo de mais de duas décadas de vida, que, quando o nosso avô morre, nos medem o pescoço para escolherem o tamanho ideal para a camisa.

Nunca me tinham contado que os funerais têm de ser organizados. Que há uma série de protocolos para a funerária levantar o corpo. Documentos para assinar. Reservas para fazer. Que temos de escolher um caixão, uma entre milhares de opções de personalização, mais uma necessidade inútil gerada pelo mercado. Assegurar o conforto eterno de um corpo que já abdicou das exigências terrenas. Desconhecia que temos de escolher um fato. O derradeiro. E tem de ficar bem, ainda que nunca mais o voltemos a ver.

Nunca me tinham contado que os sinos tocam tão alto. Tão alto que não consigo ouvir a minha mãe a gritar-me ordens desde o topo das escadas. Não sei se devo ajudar a levar as coroas ou os ramos, apenas adivinho que aquelas campânulas gigantes ainda dobram. E os sinos repicam insistentemente, lá do alto da torre da igreja, coberta em azulejos como são as das aldeias que, por muito que cresçam, nunca saberão deixar de ser pequenas. Decido carregar todas as flores que se encontram no carro, por via das dúvidas. A ausência de reclamações leva-me a crer que descodifiquei bem o pedido que se escondia por trás da máscara.

Nunca me tinham contado que teria de agradecer a tanta gente que desconheço. “Os meus sentimentos” seguem-se, uns atrás dos outros, frase feita que é cortês, mas pouco ou nada diz. Que sentimentos tão seguros poderiam ter, se nem eu sei quais são os meus neste momento? Agradeço antes o gesto que se esconde por trás deste chavão oco. Que se preocupam. Que gostavam de ter algo melhor para oferecer, além da sua presença e do som da sua voz. Porventura, nunca lhes terão contado que teriam de me confortar num funeral.

Nunca me tinham contado que teria de carregar um caixão. Se me tivessem contado, gostaria de ter sabido que é pesado. Não tanto como deveria ser. O peso de setenta e seis anos de vida deveria ser impossível de ser carregado por quem não a viveu. Mas o meu braço não cedeu. E lá caminhamos, a passo seguro, como se não tivessemos ninguém à espera. Ninguém à volta. Até ao fim. Não me contaram que não iria chorar. Logo eu, um chorão incorrigível, rapaz do pranto fácil.

Nunca me tinham contado que a última memória que o meu avô me iria deixar era terra nos sapatos. Que teria de caminhar sobre aquele monte de terra, enterrando-me até ao tornozelo, para o poder colocar sobre as tábuas, antes de o descerem. Aqueles sapatos que, horas antes, apenas conheciam o corpo de um manequim. A lembrança de que somos pó e ao pó da terra voltaremos. A vida é a oportunidade que temos para moldar o barro, desta feita sem sopros divinos.

Poderiam ter-me contado que me despediria poucas horas depois do funeral numa crónica. Nesta, para ser exato. De todas as coisas que não me contaram, seria a única em que acreditaria. Se algum dos seus netos chegar a conhecer a fama, esperemos que de forma digna, o seu nome não terá hiperligação para a sua própria página da Wikipédia. O meu avô tinha a quarta classe. Foi serralheiro mecânico e morreu no Dia do Trabalhador. Um entre tantos outros. Parece-me justo, ainda que insuficiente, que pelo menos oito centenas de palavras partilhem um pouco da sua memória.

O meu avô ensinou-me a jogar dominó. Deixou-me uma série de histórias, tantas vezes repetidas que se confundem e se fundem numa só. Deixou-me, ainda que por via indireta, uma teimosia irreparável. São fragmentos aleatórios. Por muito que tente, não há mais nada que me ocorra agora. Apenas que o mundo está pior porque continua a girar. Indiferente. Porque, apesar de tudo, amanhã preciso de estudar para o teste que terei na terça-feira. E isso não faz sentido nenhum.

Não gosto de pintar as despedidas com simbolismos fingidos. Reservo-os todos para a prosa. Adeus, até logo ou até à próxima. Alguma das religiões haverá de estar certa, o diagrama de Venn não mente. E obrigado. Pelo fato. E por tudo o resto.

 

Artigo da autoria de Francisco Caetano

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version