Opinião
Viajar por caminhos imperfeitos
Num tempo em que os planos e sonhos de viagens foram postos em causa, adiados por tempo indeterminado ou percecionados como projetos longínquos e incertos, e sendo que o setor do turismo está a atravessar uma grave crise económica, venho explorar o conceito de viagem e a forma como é encarado no século XXI.
Apesar de ser um lugar-comum, não deixa de ser verdade que viajar é mais do que o deslocamento físico a outra região/cidade/país/continente – é extravasar o nosso quotidiano, desligarmo-nos das nossas tarefas e preocupações rotineiras e entrar num novo mundo, abertos a novas sensações, culturas e conhecimentos, deixando-nos surpreender. Quando viajamos, parece que o tempo para. Contudo, não é tempo perdido. Pelo contrário, é deveras enriquecedor e molda as lentes com que vemos o mundo e os outros ao nosso redor.
Com a pandemia que nos assoberbou, surgiu todo um novo modo de viajar a que ficamos mais abertos, desde visitas digitais a museus, a literatura de viagem, passando por programas televisivos sobre destinos turísticos, entre outros. Também as escapadinhas dentro do país tornaram-se mais comuns e apetecíveis pelos portugueses.
Imbuída pelo desejo de sentir o espírito de interculturalidade em tempos de pandemia, iniciei-me na literatura de viagem, com um livro genial de José Luís Peixoto – “O Caminho Imperfeito” – que nos transporta magicamente para a Tailândia. José Luís Peixoto ficou célebre com a publicação da sua primeira obra “Morreste-me”, sobre o falecimento do seu pai, tendo recebido o Prémio José Saramago em 2001 pelo romance “Nenhum olhar”. Lançou-se mais tarde na literatura de viagens com a obra “Dentro do Segredo – Uma viagem na Coreia do Norte”, que tal como o “Caminho Imperfeito” de 2017, extrapola os “clichés” deste tipo de literatura.
Na obra “O Caminho Imperfeito”, o autor leva-nos juntamente com ele até Banguecoque, passeando pela margem do rio Chao Phraya e pelo Templo Wat Bang Phra, passando pelo Buda de Ouro – a maior estátua de ouro maciço do mundo. Explorando a gastronomia típica tailandesa, consegue fazer-nos saborear os aromas ácidos, picantes e quentes de um Tom Yam Pla Chawn, uma sopa de peixe, ou de um Gaeng daeng, um prato de caril vermelho. Tornamo-nos familiarizados com a cultura tailandesa, as suas crenças, valores e costumes. Uma cultura que valoriza muito a individualidade, tanto que se estima que cerca de 81% dos sobrenomes e 35% dos nomes próprios na Tailândia sejam únicos! Para além disso, a cada dia da semana associam um Deus e uma cor diferentes.
Na altura em que Angelina Jolie, numa viagem a Banquecoque, tatuou um tigre, foram várias as pessoas que nas férias pela Tailândia decidiram fazer o mesmo. No entanto, poucas pessoas conhecem o significado que estas tatuagens denominadas Sak Yants têm para os nativos, e a espiritualidade e misticismo que lhe atribuem. Estas tatuagens remontam ao império Khmer (802-1431) que dominou várias regiões asiáticas e que hoje são conhecidas como Tailândia, Camboja, Laos, Malásia, partes do Vietname e China e conferiam proteção divina aos soldados. Assim, as Sak Yants simbolizam proteção contra o mau olhado e as injustiças. Os tatuadores são geralmente monges budistas e a cultura budista diz-nos que a tatuagem terá de ser abençoada a cada ano e associa-se a um conjunto de regras de boas práticas – transpondo para a religião católica corresponderiam aos 10 mandamentos – e a proteção quebrar-se-á se elas forem desrespeitadas.
O povo tailandês é bastante singular e envolto de um grande misticismo. Se o olharmos à luz dos nossos pontos de vista, dificilmente o conseguiremos perceber e ultrapassar as barreiras entre culturas. Isto aplica-se a qualquer cultura, pois o intercâmbio cultural só nos acrescenta algo se nos predispusermos à descoberta e à aventura, livres de ideias pré-concebidas e de julgamentos.
Definitivamente, a obra de José Luís Peixoto faz-nos refletir sobre o turismo do século XXI e a falsa multiculturalidade que está instituída em muitos dos turistas europeus. Ora, o turismo português seguiu a tendência global de crescimento, arrancando ainda nos anos 60, com um ligeiro atraso face aos destinos mediterrâneos, tornando-se uma prática mais vulgarizada e acessível no final da década de 80. Se olharmos em retrospetiva, a grande maioria dos nossos bisavós nunca passou férias fora e uma grande parcela dos avós nunca andou de avião. Já os nossos pais terão feito algumas viagens e a maioria de nós, jovens, andou pela primeira vez de avião na infância/adolescência. Portanto, esta é uma prática recente, que foi evoluindo e modificando-se ao longo das últimas décadas, mas é uma experiência que não está acessível a todos mundialmente, fruto das gritantes desigualdades económicas entre países de primeiro e terceiro mundo.
Nos últimos anos, foram popularizando-se novos destinos turísticos, seja Tailândia, Cabo Verde ou Cuba, associados a um conceito de turismo baseado no alojamento em resorts de luxo que contrastam drasticamente com a realidade circundante, onde os turistas acabam por ter uma vivência de falsa multiculturalidade, alheados da miséria, exploração laboral, pobreza e divergências culturais que muitas vezes se fazem sentir. Mas até que ponto este tipo de viagens fará sentido? A verdade é que também existem praias paradisíacas e paisagens naturais deslumbrantes na Europa, nomeadamente na Grécia, Croácia, Itália, entre muitos outros países. Existem vários tipos de turistas e é ótimo haver essa diversidade, mas se não há interesse, tolerância ou apetência para o multiculturalismo, qual é o propósito de viajar milhares de quilómetros?
Em jeito de conclusão, viajar é das melhores formas de desacelerar, desconectar, deambular sem estar perdido, vivenciar experiências e criar memórias. Quando em boa companhia, melhor ainda. E citando Mark Twain, “a viagem é fatal para o preconceito, intolerância e estreiteza de espírito”. Assim, os caminhos imperfeitos são os mais enriquecedores e são os que nos permitem ir além da superficialidade. E como a humorista Joana Marques dizia há tempos numa entrevista, não podemos ir a Bali ou à Índia com o intuito de nos encontrarmos, pois sendo nós portugueses o mais provável é encontrarmo-nos cá! Não devemos confundir viagens com introspeções, pese embora tenham elementos comuns, não são um só.
Artigo da autoria de Mariana Batista Maciel