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Artigo de Opinião

Uma mãe não tem o direito de estar viva quando um filho morreu

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Numa crónica (como sinto saudades delas) em que recorda a sua mãe, António Lobo Antunes relembra uma frase da sua progenitora, que dizia que “uma mãe não tem o direito de estar viva quando um filho morreu”. Vivi poucos anos, mas não me parece haver sofrimento mais forte (este nunca irei sentir). Ninguém tem o direito de o conseguir tolerar. No mesmo texto, Lobo Antunes escreve que a mãe “morreu de lhe ter morrido o filho”.

Para muitos, a morte é o maior medo que alguém tem de enfrentar durante a sua existência. No momento em que uma mãe perde um filho, a morte física é talvez encarada como uma bênção. Uma possibilidade, por mais remota que seja, de voltar a ver o seu pequeno. A morte psicológica acontece muito antes. O mundo perde o encanto.

Este mês, uma bebé de dois anos foi esquecida pela mãe durante sete horas num carro, no centro de Lisboa. A mãe saiu de manhã de casa com os três filhos menores e deixou dois deles nas respetivas escolas. No regresso a casa, não se apercebeu que no banco de trás estava a filha mais nova.

O estado em que se encontram os progenitores não permitiu, ainda, a sua inquirição por parte dos inspetores da Polícia Judiciária. Tudo indica que se tenha tratado de um caso de negligência, provocado por um extremo cansaço da mãe, em consequência de uma agenda sobrecarregada, em teletrabalho.

Nestes casos, a praça pública apronta-se a reunir para apontar o dedo, teclar e fazer julgamentos infundados e irascíveis. As soluções fáceis são arquitetadas pelos mais brilhantes treinadores de bancada.

“Ninguém passou naquela rua? Ninguém olha para o lado?”, ou será que “estiveram sempre ocupados com o smartphone e nem se lembraram que tinham um filho…”. Talvez, para estes pais, a bebé “não passa de um adorno social, um estorvo, uma mera senha de entrada na festa das pessoas socialmente cumpridoras e cidadãos modelares”. Estes comentários não foram fruto da minha imaginação, mas oriundos da caixa de comentários de uma notícia no jornal Público. Felizmente, o contrário também aconteceu. Um texto de Susana Almeida, autora de um blogue sobre maternidade, foi partilhado milhares de vezes, com a premissa de que “Podia ter sido eu”.

Independentemente do que seja apurado como razão do crime, este acontecimento devia fazer-nos acordar para começar o debate, há muito adiado, sobre a relação entre família e trabalho.

Quem é que acorda e se esquece que tem de ir para o trabalho? Só a memória constante do dia seguinte é algo que nos atormenta a noite, o sono e a manhã. Ou estamos no trabalho ou na pausa do trabalho. Somos perseguidos pela culpa de dedicar poucas horas aos filhos ou poucas horas à labuta. A mentalidade predominante é a de viver para a sexta-feira e empurrar para bem longe a segunda. Os colegas de escritório tornam-se nos irmãos, tios, netos ou primos.

Vivemos em piloto automático, velocidade de cruzeiro, com palas nos olhos e um objetivo apenas: trabalhar. Tudo o resto são adereços. O stress é constante e o tempo para o reduzir cada vez menor. A licença de maternidade é o mais curta possível.  A ideia da redução do horário de trabalho é tida como um ultraje por aqueles que apregoam a fórmula das horas extra (não remuneradas) como o (falso) expoente da produtividade.

Em tempos de pandemia, o cuidar carinhoso dos Avós foi proibido. Os escritórios do domicílio metamorfosearam-se para jardins de infância. Passamos a viver de barriga para cima, com as patinhas dormentes, já não encaixávamos na nossa cama, no nosso corpo, nesta vida de quarentena, como se nos tivéssemos tornado bichos que tinham vergonha de sair à rua.

Concordo com a mãe de António Lobo Antunes, mas acrescento: um filho também não tem o direito de viver sem chegar a conhecer verdadeiramente os  pais.

 

Artigo da autoria de João Paulo Amorim

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