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Crónica

Inside (a ode a uma geração perdida)

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A 10 de Março de 2020, enviava a minha candidatura ao Jornal Universitário do Porto. Entre os textos que convenceram o Miguel a aceitar a minha humilde contribuição, surgia um, confesso que daquela colheita o mais fraco, acerca dos limites do humor. Nele falava, entre outras coisas, de um comediante americano que se tinha retirado dos palcos em 2016 – “Ao ver a aparente normalidade de uma geração que não se consegue encontrar ser despedaçada pelas letras ridículas das músicas de Bo Burnham”.

Estava longe de imaginar que Bo Burnham se encontrava, naquele exato momento, por um alinhamento cósmico insignificante para uma das partes, prestes a enveredar pela gravação do seu novo especial de comédia, Inside. Conheci-o numa noite de insónias, no meu último verão pré-faculdade, em 2017. Cantava Art is Dead no Green Room, rodeado de nomes com tradição na comédia norte-americana. Tinha vinte anos à data da gravação e o peso da adoração alheia sobre os ombros. Cantava sobre a comercialização a que estão sujeitos os consumidores da sua arte, cegos pela veneração religiosa de seres viciados em atenção e desapegados da realidade das pessoas comuns. Os ‘artistas’. O chorrilho de novos produtos para consumo imediato sob a forma de influencers. E eu, repleto de ingenuidade, nunca me tinha sentido tão representado.

Seria o primeiro apontamento da evolução de Bo Burnham. O ridículo no comum evoluiria para o ridículo na tristeza. Bo afundava-se na pressão do seu privilégio e manifestava-o no fim de cada espetáculo. We Think We Know You fechava “what”, em 2013. Mascarada pelo número sonoro erigido do vazio e pelo espetáculo de luzes magistralmente organizado, uma imagem de marca, surgia uma mensagem clara. Bo não é apenas o seu alter ego em palco. É mais do que isso. Can’t Handle This é mais direto a abordar essa temática, mas insiste em apresentá-la num invólucro muito mais espetacular do ponto de vista artístico. Naquilo que se afirmava como uma paródia de um concerto de Kanye, com queixumes absurdos sobre latas de Pringles, Bo parte de uma metáfora ridícula com burritos para descrever o estado periclitante da sua saúde mental. A ânsia de agradar. De ter tido mais olhos que barriga. De dar ao público aquilo que já não consegue dar a si próprio. Momentos de felicidade, um sentimento de satisfação. A culpa não é nossa, claro está. É sua. E isso só agrava a situação.

E foi assim que Bo Burnham se despediu dos palcos. Sem promessa de um retorno. Apenas um adeus ao piano e a eterna dúvida que o atormenta. Se somos felizes. Lamento pelo prólogo, mas o contexto é essencial para compreenderem os contornos da minha relação com o artista. Aquele híbrido entre uma girafa e a Ellen DeGeneres, palavras do próprio, sempre agiu como uma voz da consciência para as dores de uma geração. Pelo menos para o modo como eu entendo a minha. A geração que falhou a vida. Que herdou um mundo que não pode pagar. A geração mais educada da História, mas que não se consegue provar. Bo Burnham é a manifestação artística do meu complexo de Peter Pan, a relutância em amadurecer e levar a vida a sério. Não só porque ser adulto parece um faz-de-conta, mas principalmente pela impossibilidade de ser derrotado pelo que se leva em tom de gozo. É mascarar todas as inseguranças numa piada, para que cheguem aos outros sempre com um véu de dúvida.

Do meio de um dos períodos mais conturbados das minhas quase vinte e duas órbitas solares, emerge Inside. Como bom fã, já tinha marcada a data no calendário desde que foi avançada por fontes obscuras em fóruns duvidosos. Como fiel seguidor dos seus ensinamentos de vida, falhei-a. Com três dias de atraso, mergulhei na experiência musical que a Netflix me oferecia. E, no fim, tive de a rever. O documentário da descida de Bo à insanidade, fechado no anexo que nos tinha dado a conhecer pela primeira vez na sua despedida, podia ser a alegoria para o que os nossos cérebros enfrentaram durante o primeiro confinamento. Se tivessem criatividade para tal.

Do brilhantismo cinematográfico, aquele possível a um homem e uma câmara, muitos falarão melhor do que eu. A mim compete-me passar para palavras a inquietação que Inside me transmitiu. Inside são as noites sem sono a contemplar a extinção em massa. As noites passadas a chorar cenários perdidos. A lamentar a enésima crise financeira em duas décadas de vida e a visão de um futuro de trabalho precário. Inside é o desencanto de uma geração que a pandemia ajudou a reacender. O especial de comédia de Bo Burnham não é uma fuga da realidade. É dar-lhe a volta. Olhar para o absurdo da nossa condição com o distanciamento que o confinamento nos proporcionou. Despertados do entorpecimento causado pelo dogma da rotina, emerge uma resposta simples. O riso. Perante o ridículo.

Algo me leva a crer que o espectro dos LCD Soundsystem que paira sobre os segundos finais de 30 é mais do que acidental. Se Inside fosse uma música, seria All My Friends. Uma celebração dos paradoxos. É triste. Mas também é feliz. Alberga uma esperança retorcida no futuro. Uma salvação por Deus ex Machina. É a nostalgia da juventude perdida daqueles que, na verdade, ainda não tiveram tempo para a desperdiçar. É sentir que envelhecemos. Que amadurecemos. Mas também que falta tanto para ver. All My Friends é a música para o ponto mais alto de uma festa. E é aquela que eu ouço antes de adormecer. É a experiência catártica de recordar as ocorrências de uma vida. O bom e o mau. De deixar que tudo nos aconteça. “If I could see all my friends tonight” cantava James Murphy, sem saber que o faria por milhões. Mas especialmente por mim, fechado em casa.

É o hino de uma geração. É absurdo. É fragmentado. Um manifesto anti-Bezos. Um manifesto contra os que nos fizeram herdeiros de um mundo destruído e que se fazem representar pelos donos da comunidade eternamente ligada que crescemos a odiar. Os que comercializaram as nossas emoções. E é a constatação que já não sabemos viver sem eles. É um espetáculo. Uma coleção de pensamentos ridículos. É mais do que isso. E muito menos do que queríamos que fosse. Inside não precisava de uma pandemia para ser relevante. Do mesmo modo que All My Friends mantém a sua atualidade 14 anos depois.

A vida no novo milénio é esta busca incessante por um propósito, enquanto somos confrontados pela conclusão entorpecida de que estamos condenados. Tudo aquilo que percebemos, enquanto estávamos fechados em casa é insignificante. O mundo não parará de girar para nos deixar sair. Resta-nos continuar. Preencher o nosso tempo com assuntos sem importância. E, entretanto, pode ser que, uma destas noites, possamos voltar a ver os nossos amigos.

 

Artigo da autoria de Francisco Caetano