Artigo de Opinião

Em 2021, os “Gato Fedorento” teriam apenas um episódio

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O início deste século presenteou-nos com um programa chamado “Gato Fedorento”. Num dos episódios, o sketch “É melhor chamar o Fernando” retrata um grupo de amigos que tenta salvar um dos seus elementos da homossexualidade. Este elemento, do sexo masculino, começava a reparar no corte de cabelo das mulheres, na cor das paredes e falava sobre signos. O grupo estava a perdê-lo para a “doença” da homossexualidade e ele não se estava sequer a aperceber.

Se o programa tivesse sido lançado em 2021, o cenário seria este: as redes sociais seriam inundadas de críticas e a SIC via-se obrigada a cancelar emissões futuras. Os quatro humoristas ficariam manchados para sempre.

Vivemos hoje um ambiente de puritanismo e suscetibilidade que é avesso à saudável troca de ideias. Muitos perderam por completo o sentido de contexto e de interpretação. O sketch em questão goza com o elemento homossexual quando o verdadeiro objetivo é criticar o machismo. A ironia está no facto de o elemento do grupo que estava a “resvalar” para a homossexualidade ser salvo pelo Fernando, um forcado – um homem reconhecido pela sua masculinidade que veste collants. Como é mais do que lógico, não se pode converter ninguém em heterossexual porque a orientação sexual não é uma questão de fé.

Quem afirma que não se pode fazer piadas sobre homossexuais ou sobre asiáticos ou sobre seja o que for por isso ser discriminatório é que se torna discriminatório. O humor sem limites trata todos por igual. Até os próprios lesados pelas piadas são capazes de ter sentido de humor em relação a eles próprios. A comédia não tem poder para mudar nada – uma piada sobre uma tragédia não aumenta a tragédia nem a diminui. O que o ato de rir permite é tornar-nos superiores aos problemas.

Infelizmente, existe hoje uma forte tendência para confundir o tema de uma piada com o alvo da piada. É o mesmo que acontece com um homicídio num filme: ninguém morre, não há sangue, não há sequer um homicídio. É tudo uma representação, uma forma de transmitir uma mensagem.

Deus perdoa, o Twitter não.

Com o empurrão das redes sociais, é fácil clicar num botão e juntarmo-nos para destruir a carreira de um artista, apenas por causa de uma piada no momento errado ou uma situação mais infeliz. Vemos alguém a correr pela rua e corremos também, sem saber bem porquê. Com isso, criamos uma cultura de apreensão, na qual as piadas são cada vez mais ensossas. É difícil ter uma conversa quando toda a mesa tem medo de falar. O verdadeiro humor toca na ferida, enamora o tabu e desperta a controvérsia.

Mesmo nos casos mais graves, em que uma situação infeliz escala para um crime, a justiça é que está encarregue de julgar e sentenciar o culpado. A sociedade não tem o direito de se achar a divina e perfeita substituição do tribunal e cortar cabeças na praça pública, apagando qualquer registo da pessoa em questão para sempre, cancelando também qualquer pessoa que oiça, veja ou comente a obra do predador sexual que é simultaneamente um génio no seu trabalho.

Numa entrevista ao jornal Metro, o humorista Ricky Gervais disse: “Desligarem a vossa própria televisão não é censura. Tentarem fazer com que outra pessoa desligue a sua televisão porque não gosta de algo que estão a ver, é diferente”. Qualquer pessoa tem o direito de criticar o Inimigo Público por propagar mentiras. Mas se dermos a essa mesma pessoa o direito de acabar com o suplemento do jornal Público por causa dessa justificação, temos um problema sério. Iríamos deixar nas mãos dos que não têm qualquer sentido de ironia, de contexto e qualquer capacidade de interpretação o poder de decidir o que pode ou não pode ser alvo de uma piada.

Mesmo que não concordemos com o que diz um idiota, devemos defender o seu direito em expressar-se, pois para discordarmos dele temos que o ouvir primeiro.

E o problema central passa a ser como definir quais os temas proibidos, pois há nisso uma subjetividade total. Toda a gente tem o direito de se declarar ofendida, com absolutamente tudo.

Portugal teve uma experiência, no século passado, em que viveu bastantes décadas sob um regime que impunha limites à liberdade de expressão. Pelo que ouvi dizer, não correu muito bem. As ditaduras e os regimes autoritários impõem limites e censuram livros pois sem estes o nosso pensamento fica limitado. Impor limites é sinónimo de censurar.

Achar que o humor deve ser estrangulado por limites é não concordar com a liberdade de expressão. E um dia esses limites acabarão por cair para o nosso lado.

 

Artigo da autoria de João Paulo Amorim

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