Crónica
No princípio eram as constantes
Foram certamente sonhos (muito inquietos) que despertaram deus naquela sombria manhã de domingo. No mais deprimente dos dias da semana, muitos cedem à tentação da reflexão, questionam o sentido da vida, até ousam duvidar da sua própria existência. Nem todos criam universos.
Deus encontrou a fórmula perfeita para pôr um término à grave crise existencial que o acometia. Angustiado pela enorme monotonia do tempo em que nem o tempo existia, deus tinha demasiado tempo para pensar. Com a criação, deus esperava simultaneamente provar e justificar a fonte do seu (do nosso) desassossego: a sua existência.
Aos mais leigos na arte da criação de universos, asseguro-vos que não é tarefa fácil, muito menos se estiverem restringidos por prazos apertados. É sabido que, por norma, ao tempo ganho no processo criativo está inerente uma perda de qualidade da obra. Fruto de experiências passadas, felizmente não pessoais mas das quais tenho sido testemunha, nunca aconselho a principiantes menos de uma semana de total dedicação.
O grande segredo deste ofício consiste em compreender que antes de criar algo é necessário determinar certas propriedades invariáveis que regem a essência do objeto criado. Se criássemos o quadrado sem lhe termos atribuído previamente o número fixo de lados que o compõem (quatro), a pobre figura geométrica ficaria desenquadrada entre triângulos, hexágonos ou outros polígonos, e jamais chegaria a assumir a forma que lhe pretendíamos destinar. Sem constantes não há essência que se sustenha, e sem essências o que resta?
Assim, antes de criar a luz, e a propagar por todo o cosmos, deus teve de estabelecer a invariância da sua velocidade no vazio. Antes de criar a lua, o sol e as restantes estrelas, e as soltar nas respetivas órbitas, deus precisou de definir a constante de gravitação universal. Antes de criar o ser humano, deus quis incluir na nossa essência a garantia da sua própria existência. Então deus criou o sonho.
A beleza das constantes é precisamente a sua constância. Independentemente dos deuses que venerem, das religiões que preguem, dos dogmas que imponham, o sonho permanece. Indefinido, inconcreto, mas imóvel.
O sonho desperta, e liberta. E sempre que alguém sonha, o mundo avança, na trajetória duma perpétua incumprida esperança.
(Que seja feita a Sua vontade)
Artigo da autoria de Pedro Figueiredo