Crónica

Os Jogos Olímpicos deviam fazer-nos repensar a Educação Física

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Corria o século XVI e já Luís Vaz de Camões criticava o povo português pelo seu desprezo às letras. Volvidos mais de quinhentos anos, pouco mudou e, cada vez mais, parece ser algo entranhado na génese portuguesa. Esta realidade está bem viva também no desporto que, em Portugal, parece ser sinónimo de “futebol”. Somos um país em que a cultura desportiva é quase inexistente e pouco se faz para a promover, desde os meios de comunicação até ao próprio sistema educativo.

Tudo isto parece ser sobejamente conhecido por todos, mas apenas surge como uma problemática a resolver durante os Jogos Olímpicos e perante a dificuldade de Portugal em obter medalhas. Saímos de Tóquio 2020 com a melhor participação portuguesa de sempre na competição, algo que se deve à excecionalidade e ao grande esforço de toda a equipa nacional, uma vez que durante toda a preparação foi escasso o investimento e poucos foram aqueles que acompanharam os nossos atletas. Traduzindo isso em números, em mais de um século de participações portuguesas, somam-se ao todo 28 medalhas, cinco delas de ouro.

Este histórico é francamente modesto se compararmos com outros países europeus com a dimensão de Portugal. A Hungria, por exemplo, com menos de 10 milhões de habitantes e um PIB per capita inferior ao português, é a oitava nação mundial com mais medalhas conquistadas de sempre – 491 medalhas, 181 de ouro. Veja-se também a Eslovénia, que tem pouco mais de 2 milhões de habitantes e apenas se estreou como país nos Jogos Olímpicos de 1992, possui o mesmo número de medalhas que Portugal tem, com a vantagem de oito delas serem referentes ao lugar mais alto do pódio.

A verdade é que Portugal é dos piores países europeus no medalheiro, apenas à frente da Letónia, Kosovo, Luxemburgo, Moldávia, Islândia, San Marino, Macedónia do Norte, Chipre, Montenegro, Albânia, Andorra, Bósnia Herzegovina, Liechtenstein, Malta e Mónaco. Somos então apenas melhores que microestados e países com menos de 3 milhões de habitantes. Este cenário bastante penoso (que é ainda pior nos Jogos Olímpicos de Inverno) é, no entanto, ignorado por muitos portugueses e parece não motivar uma resposta governamental.

Dados do Eurobarómetro mostram que, juntamente com a Grécia e a Bulgária, somos o país mais sedentário da União Europeia, algo que, segundo a Direção-Geral de Saúde, tem um custo de 900 milhões de euros por ano para Portugal. Sem pessoas a praticar desporto não é possível criar campeões olímpicos, mas pior do que isso, a inatividade física dos portugueses torna-nos numa nação com graves problemas de obesidade e de doenças cardiovasculares, que consequentemente têm peso nos valores da mortalidade.

Isto é o reflexo de uma sociedade que não valoriza o desporto como um todo e possui um escasso conhecimento desportivo. Os média são em parte responsáveis por isso, uma vez que as editorias de desporto apenas difundem informações sobre futebol, relegando a outra massiva quantidade de modalidades para segundo, terceiro, ou até mesmo quarto plano.

As televisões generalistas, ao invés de fazerem a cobertura de competições desportivas nacionais, optam por programas banais ao fim de semana, que nada nos acrescentam. Os telejornais são também um palco bastante inacessível a qualquer outra modalidade que não seja o desporto rei. O atletismo, onde Portugal é mais bem sucedido nos Jogos Olímpicos, apenas é notícia quando algum atleta vence uma medalha internacional, por exemplo.

Outros desportos olímpicos, como o hóquei em campo, nem sequer possuem a atenção dos jornalistas. Veja-se que durante 1 e 7 de agosto decorreu, em Lousada, o Campeonato Europeu III de Hóquei em Campo. Numa pesquisa feita no ‘Google’ encontrei um total de zero notícias sobre a competição nos principais órgãos de comunicação portugueses.

Contudo, a falta de cultura desportiva que também está assente no jornalismo resulta indubitavelmente da educação que é recebida nas escolas portuguesas. O sistema educativo de Portugal não promove o desporto e a prova disso é a própria Educação Física. Com uma carga horária bastante reduzida no 1º ciclo, vista por muitos professores nos outros ciclos escolares como uma disciplina de segunda e durante alguns anos sem qualquer peso para média final do secundário, não é possível incutir aos jovens a paixão pelo desporto.

Recuperando a obra de outro grande autor português, “Os Maias” de Eça de Queirós, a educação portuguesa parece ter sempre dado primazia à memorização de conceitos, ao mesmo tempo que se afasta do desporto, das atividades ao ar livre e do contacto com a natureza. Não deixa de ser irónico que este velho livro, assim como “Os Lusíadas”, sejam estudados nas aulas de Português e que as suas mensagens continuem atuais, uma vez que não existe a promoção da cultura e do desporto nas escolas.

Por falta de vontade política, ou por falta de coragem, também nunca se vê em cima da mesa propostas que tragam uma reforma do sistema educativo português, algo que urge a acontecer se tivermos em conta tudo o que já dito até aqui. A Educação Física deve conseguir transmitir uma cultura desportiva aos alunos e não afastá-los do desporto como muitas vezes acontece.

Atualmente, a disciplina não passa de um amálgama de desportos que, muitas vezes, são lecionados sem qualquer critério, levando a que uma turma apenas pratique modalidades coletivas, em especial o futebol e o futsal. Não existe a preocupação de incluir todos os alunos nas aulas sequer. Grande parte das vezes a Educação Física serve até como mais um palco para as situações de bullying e discriminação, em que os jovens mais baixos, mais gordos, mais efeminados, ou mais descoordenados, não têm oportunidade de encontrar o seu lugar no desporto.

Ora isto é grave e deve ser corrigido imediatamente. Para isso é necessário dar mais liberdade aos alunos, mais liberdade à educação, indo ao encontro dos interesses de cada um dos nossos jovens, que hoje em dia têm que se cingir apenas aos “pacotes de aprendizagens” disponibilizados pelas escolas.

De modo a que a nossa sociedade tenha uma verdadeira cultura desportiva e competitiva é importante que desde tenra idade os alunos sejam ensinados e motivados a praticarem desporto. A Educação Física até ao 9º ano deveria dar a conhecer as várias modalidades olímpicas de verão e inverno, assim como avaliar as habilidades dos alunos e trabalhá-las com o Desporto Escolar.

Já no ensino secundário, a estratégia deve ser diferente, apostando-se na profissionalização dos jovens numa modalidade específica. Depois de vários anos a experimentar os vários desportos, chega a hora de se eleger aquele que os alunos mais gostam e que sentem que poderá ajudar-lhes na construção de uma boa média. Ao praticarem aquilo que gostam vão gozar das diversas vantagens que o desporto traz, assim como ter mais vontade de se exercitarem.

Todavia, para que isto seja possível, é necessário que haja um envolvimento de várias entidades, desde o Desporto Escolar, até às autarquias, passando também pelos diversos clubes federados. Pede-se um esforço a todos para que seja possível apoiar os alunos nas suas escolhas e permitir que estes tenham as condições necessárias para treinarem.

O governo deve também apoiar os jovens que por força da natureza da própria modalidade escolhida têm que se deslocar vários quilómetros para a sua prática. Por exemplo, quem escolher remo ou surf vai necessitar de ter aulas num concelho com rio ou praia, respetivamente.

Veja-se que ao responder às vontades de todos os alunos estamos também a oferecer-lhes a oportunidade de realizarem algo que gostem nos tempos livres, uma vez que ao praticarem um desporto que potencia as suas habilidades irão ter prazer naquilo que fazem e não irão encará-lo como uma obrigação. Por sua vez, teremos alunos mais motivados, com melhores resultados escolares, mais felizes, menos sedentários e com uma boa cultura desportiva.

Só assim teremos uma formação cheia de opções e qualidade nas diversas modalidades, o que se irá refletir nos resultados conquistados por portugueses nas competições internacionais. Além disso, é a oportunidade que o país precisa para aumentar a sua oferta de modalidades. Por exemplo, os saltos para a água são um desporto praticamente desativado em Portugal, assim como muitos outros que são realizados no gelo ou na neve, como o curling e os saltos de esqui.

Deve-se também encarar uma reforma desta envergadura como uma oportunidade para promover a inclusão dos jovens com deficiência, potencializando o desporto paralímpico português. Muitas pessoas nesta situação não se sentem acolhidas pela comunidade, algo que pode mudar ao encontrarem uma modalidade que permita a valorização das suas capacidades.

Mas para que esta valorização ocorra, é necessário de um esforço governamental e autárquico que parece não existir. Para que tal mude, é preciso também que as pessoas o exijam aos governantes, sendo que terão a oportunidade de o fazer já nas próximas eleições autárquicas – que este ano calham no mesmo ano dos Jogos Olímpicos.

Esta exigência não é descabida, até porque, segundo um estudo realizado por Maria Clara Henriques, por cada euro por cada euro investido em programas de promoção da atividade física, verifica-se uma redução de 4,9 euros nos custos com o sedentarismo e de 3,4 euros com os cuidados de saúde. Sabe-se ainda que antes da pandemia, em 2016, o desporto valia 1794 milhões do Valor Acrescentado Bruto (VAB) gerado em Portugal.

Reformar a Educação Física ganha então uma grande importância, no entanto, se tivermos em conta aquilo que sempre foi feito em Portugal, não se espera uma mudança de paradigma para breve. Em anos de Jogos Olímpicos os nossos ouvidos são inundados de promessas que visam desenvolver o desporto português, mas estas acabam apenas por dar lugar a estratégias de curto prazo que não resolvem os problemas do sistema educativo português. Enquanto não houver coragem para libertar a educação em Portugal, não nos resta outra opção senão juntarmo-nos a Camões e a Eça de Queirós à espera da mudança.

 

Artigo da autoria de André D’Almeida.

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