Artigo de Opinião
Os perigos da ideologia do poder
Há livros que não queremos guardar na estante e cujo fim à vista aperta a garganta a quem está a ler. Adiar o desfecho de uma história que apraz o leitor é hábito comum dos terráqueos mais apaixonados pelas fantásticas histórias que os génios das palavras vão cultivando neste mundo tão imprevisível. É preciso ter coragem para impulsionar o nascimento de obras que perdurarão – pelo menos, na história das ideias – durante o desabrochar das gerações vindouras. Há um autor (e, mais do que contador de histórias, um humanista e acérrimo crítico das lacunas sociais do seu tempo) cujo perfil se enquadra no arquétipo de escritor que fica inscrito na memória coletiva não só dos leitores, mas também dos que costumam dizer que “já ouviram falar”. Refiro-me a George Orwell e à sua criação que mais me inquietou: A Quinta dos Animais. Este livro não se esquece e seria egoísta da minha parte não escrever – apesar de todas as palavras serem insuficientes – sobre ele.
Os contornos gerais da história contemporânea da União Soviética são, diria, o grande fator que culmina na paixão instantânea pela leitura deste enredo. Importantes figuras políticas são personificadas pelos animais que, à mercê do seu fado, abdicam das suas liberdades em prol da exploração do “amo”. Não nos é estranha esta forma de organização social e, de facto, a situação do povo russo, ao longo da sua existência, tem demonstrado a tendência para regimes políticos autoritários. Marx, Estaline, Molotov e Trotsky são encarnados pelos animais da quinta que, após a revolta incitada pelo velho Major, tomam nas suas mãos o poder e o controlo dos meios de produção. Sucessivos acontecimentos farão parte de um processo que, inicialmente, tinha tudo para resultar: segundo os Sete Mandamentos (que só alguns conseguiam ler, porque não eram alfabetizados), todos os animais da quinta eram iguais, portanto todos tinham os mesmos direitos e os mesmos deveres. De facto, foi assim durante pouco tempo, porque a igualdade é uma utopia para quem a ama e um sacrifício para quem a odeia. Rapidamente, Napoleão, o porco mais bem-sucedido nos debates e nas assembleias, estabeleceu um sistema repressivo e de controlo cujo objetivo era manter a ordem, tendo aparentemente como prioridade os interesses dos camaradas.
Na quinta, os anos passavam. Ninguém ousava questionar o novo sistema, porque tudo estava melhor do que antes, mesmo que continuassem de barriga vazia e a trabalhar de sol a sol. Como referi anteriormente, conhecer a história da União Soviética é importante, mas não é fundamental para compreender o sentido desta fábula. Resta-nos constatar o óbvio: Orwell não se acanhou ao condenar a experiência comunista de Estaline, transpondo para uma história protagonizada por seres não pensantes a tirania do modelo de gestão do Animalismo (corresponde ao sistema político da quinta, instaurado imediatamente após a revolução).
Inquestionável é a atualidade desta obra, devendo ela servir de lição para compreender o passado, mas também para prevenir que, no futuro, o pensamento totalitário, seja ele de esquerda ou de direita, tome conta das nossas sociedades. O nosso presente é ameaçado por tentativas de experiências que têm como fim principal a supressão das conquistas democráticas que têm sido empreendidas ao longo do tempo. Importa reter que as ideologias iniciais muitas vezes são alienadas e morrem às mãos de quem as prega e que as minorias corruptas podem banalizar o seu poder e influência através de mecanismos característicos da censura: supressão da verdade e a utilização de um sistema de propaganda eficaz que controle a opinião pública.
A Quinta dos Animais merece a nossa atenção, sobretudo porque as garantias democráticas são constantemente atacadas por líderes tiranos, colocando em evidência o perigo das ideologias de poder.
Artigo da autoria de Patrícia Freitas